Forças Especiais: Ultrarresistência e Imunologia

A participação em esportes de ultrarresistência — como a maratona, o triatlo e o Ironman — tem aumentado nos últimos anos de maneira significativa.

Ricardo Guerra
Fisiologista do Exercício e tem Mestrado em Fisiologia Esportiva,
pela Liverpool John Moores University. Recentemente, o autor
prestou consultoria para núcleos da Policia Italiana.

A participação em esportes de ultrarresistência — como a maratona, o triatlo e o Ironman — tem aumentado nos últimos anos de maneira significativa.

Muitos dos atletas participantes dessas competições aderem a regimes e protocolos intensos de treinamento, visando obter uma preparação adequada para os dias de prova. Alguns até chegam a viajar para o outro lado do Mundo, com o objetivo de competir em diferentes eventos. E, para muitos desses atletas, a preparação árdua e dedicada se torna uma prioridade – às vezes, até em detrimento da vida familiar, que pode ser bem sacrificada. Portanto, conjugar o trabalho, a vida em família e um horário de treinamento rígido, pode se tornar um desafio monumental. A grande maioria, porém, acredita acumular importantes benefícios, em prol da própria saúde, na participação nesses tipos de modalidades esportivas.

Paralelamente, a participação nessas modalidades não se limita somente aos atletas comuns dentro do mundo civil. Unidades de elite das Forças Armadas, em todo o Mundo, enfatizam e priorizam parâmetros de condicionamento relacionados à capacidade aeróbica (ou seja, a resistência) em um grau bem elevado.

Como preparação para a admissão nesses esquadrões ou agrupamentos, muitos indivíduos que almejam integrar essas unidades, se preparam participando de competições de ultrarresistência, utilizando as metodologias de treinamento dessas modalidades.

Seria difícil apontar um indivíduo, em qualquer uma das equipes dos Navy SEALs – a principal e mais temida força de operações especiais da Marinha dos Estados Unidos –, que não tenha uma alta capacidade aeróbica. Muitos desses “guerreiros” são tão dedicados ao treinamento de ultrarresistência que poderiam facilmente se destacar em muitos eventos de maratona e triatlo, por exemplo, se não estivessem totalmente engajados em tarefas de suas unidades de elite.

Muitas vezes, a crença popular é que toda atividade física é boa para a saúde e para o bem-estar geral do indivíduo e que, na verdade, a carga envolvida, à qual uma pessoa se sujeita, não tem maior importância, já que a prática dos exercícios só pode trazer benefícios. Porém, essa é uma maneira muito simplista de encarar tal assunto. E, talvez, seja a hora de examinarmos a prática dos esportes e das atividades físicas, que trazem tantas alegrias e gratificação às nossas vidas, de uma forma mais aprofundada e metódica. Sem contar que os benefícios psicológicos e fisiológicos de uma programação diária, sensata e regular são primordiais. Além disso, vários estudos demonstram que a movimentação física moderada pode conferir diversos benefícios à saúde — como o fortalecimento do sistema imunológico e das funções do cérebro — e até mesmo a redução dos riscos de doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer.

Mas e se a participação nesses eventos prolongados de ultrarresistência não corresponderem aos benefícios que muitos almejam? Ou se o treinamento rigoroso (muitas vezes até mesmo prescrito por um indivíduo sem formação específica da disciplina de Fisiologia do Exercício e de Educação Física) estiver comprometendo, de forma progressiva e oculta, a função imunológica do organismo?

É bem possível que, em algum momento, a atividade física praticada de forma extrema se torne um risco para a saúde. Esses atletas profissionais e amadores, muitas vezes, desconhecem o mal causado aos seus organismos. E, com muita frequência, milhares de pessoas em todo o Mundo, com o apoio de um grupo de “treinadores” e outros indivíduos que se autoproclamam “especialistas”, estão se sujeitando a metodologias de treinamento com cargas esdrúxulas, que podem sistematicamente minar as suas defesas imunológicas.

Nosso sistema imunológico é constantemente desafiado por uma série de micróbios patogênicos. Diversos fatores, como a nossa predisposição genética, o meio ambiente, os níveis de estresse em nossas vidas, a alimentação adotada, a falta de sono, o envelhecimento e as cargas de atividades físicas, às quais nos submetemos, influenciam a robustez e a integridade desse sistema.

Quadros clínicos patológicos existentes e hábitos nocivos — como a dependência química, o uso de drogas e certas categorias de fármacos, além do tabagismo e abuso de bebidas alcoólicas, também contribuem com a supressão da resistência imunológica. Por exemplo, o uso indevido e excessivo dos antibióticos pode prejudicar o microbioma e levar o organismo a necessitar de um tempo considerável para ser restaurado, afetando, consequentemente, a função imunológica.

Também é muito comum atletas sucumbirem às infecções do trato respiratório superior, como resfriados, dores de garganta e sinusites, nos dias e semanas após uma prova importante. Tais ocorrências estão mais do que relatadas na Literatura Científica. Estudos demonstram que o risco de sofrer infecções no trato respiratório superior aumentam de duas a seis vezes nas semanas após a participação em uma maratona (42 km) ou em ultramaratonas (90 km). Estados gripais também aumentam durante as fases de treinamentos excessivos.

Como mencionado, as unidades das Forças Especiais também têm requisitos físicos que enfatizam muito a resistência e a necessidade de percorrer grandes distâncias a pé com cargas bastante pesadas. Já foi relatado que, durante a fase final do treinamento para aceitação nas unidades da Delta Force, é exigido que os atletas percorram, aproximadamente, 50 milhas [80,5 Km] carregando uma mochila com pelo menos 70 libras [31,75 Kg] de carga em menos de 17 horas.

Vale a pena mencionar que percorrer 50 milhas [80,5 Km]  em terreno montanhoso,carregando, mais ou menos, 70 libras [31,75 Kg] em uma mochila às costas por um longo período é um desafio insuperável para a grande maioria das pessoas. Trata-se de uma tarefa infinitamente mais difícil e complexa do que simplesmente carregar seu próprio peso nas mesmas condições, o que já representa um feito físico extraordinário.

Paralelamente, vale a pena considerar a capacidade dos membros das Forças Especiais, como os da Delta Force ou dos Navy SEALs. Esses indivíduos detêm atributos fisiológicos e psicológicos singulares e diferenciados. Tanto os atletas de ultrarresistência quanto os membros das Forças Especiais têm níveis surpreendentes de capacidade aeróbica. Entretanto, os integrantes das Forças Especiais dispõem também de um grau elevadíssimo de resistência e força muscular sistêmica (funcional e dinâmica) que deixa muito a desejar à grande maioria dos corredores de elite de longa distância.

Além de suas habilidades físicas, eles dominam processos cognitivos peculiares que proporcionam perspectivas inusitadas e heterodoxas sobre diversas questões. Isso permite que eles apresentem percepções e ideias que a maioria das pessoas não consegue sequer imaginar. Essa combinação excepcional da mente e do corpo permite que eles realizem feitos extraordinários e tenham a capacidade de encontrar soluções para as situações mais inesperadas. Tal habilidade está além do poder da maior parte das pessoas. Esses combatentes são filosoficamente esclarecidos.

Paralelamente, alguns dos períodos mais intensos de treinamento das Forças Especiais muitas vezes estão atrelados à privação severa do sono, a exercícios extenuantes e à redução extrema das reservas psicológicas, o que, em conjunto, deprimem vários parâmetros imunológicos, levando a uma maior vulnerabilidade a infecções respiratórias. Não é incomum, por exemplo, que os candidatos a Navy Seals sucumbam à pneumonia dupla e a outras enfermidades relacionadas, durante essas fases intensas e pouco convencionais de treinamento.

Alguns fisiologistas e pesquisadores advogam que os exercícios prolongados passam a se tornar nocivos e que diversos componentes do sistema imunológico começam a ser afetados após uma corrida intensa e contínua, com duração de mais de 90 minutos. No entanto, vale a pena lembrar que o curso de uma maratona para muitos acarreta mais de cinco horas de exercício prolongado, e um Ironman pode chegar a ter duração de até 17 horas.

A supressão imunológica que ocorre após o exercício prolongado está relacionada à elevação dos níveis dos hormônios de estresse, adrenalina e cortisol, provenientes das atividades físicas. Níveis elevados desses hormônios deprimem importantes células sanguíneas. Nesse caso, os glóbulos brancos (neutrófilos e linfócitos), que desempenham papel vital na integridade do sistema imunológico. Os neutrófilos no corpo humano são análogos e comparáveis ao icônico Pac-Man — protagonista do famoso videogame dos anos 1980 que, obstinadamente, devorava os pequenos detritos, que poderiam equivaler aos microrganismos nocivos em nosso organismo. Dessa maneira, níveis mais baixos dessas células nos tornam suscetíveis às infecções. E as atividades físicas praticadas de forma demasiada, ou prolongadas, também afetam negativamente outros mecanismos mais complexos da defesa imunológica.

O impacto ao redor desse sistema que ocorre após uma corrida de ultrarresistência é, na grande maioria das pessoas, reversível. Porém, o problema enfrentado por esses entusiastas obstinados não é apenas a agressão fisiológica, que eles encaram durante uma competição; mas também o enfraquecimento constante de seus sistemas imunológicos, que ocorre no dia a dia de suas vidas, em consequência das metodologias excessivas de treinamentos que antecedem o dia da competição. Dessa forma, agridem suas integridades físicas e psicológicas de forma constante, pois as rotinas de treinamento e as provas múltiplas são incessantes.

O que ocorre é curioso. Imaginemos que o sistema imunológico esteja tomando uma série de socos, várias vezes por semana, durante os dias de treinamento e, finalmente, sofra um nocaute no dia da prova ou da competição. Seria interessante averiguar qual é o resultado a longo prazo de uma pessoa que esteja constantemente participando de diversas maratonas ao ano e se submetendo, no dia a dia, a programas de treinamentos excessivos e sem base nos conhecimentos da área da Fisiologia do Exercício.

Potencialmente, o enfraquecimento consistente e metódico do sistema imunológico, ao longo de algumas décadas, poderia tornar uma pessoa mais suscetível a outros estados patológicos, de maior gravidade.

Uma conversa que mantive durante uma conferência de Medicina Esportiva se destacou. Foi com o diretor-médico de um dos eventos de ultrarresistência mais conceituados do Mundo. Quando perguntado sobre os impactos, a longo prazo, da participação nesses eventos, ano após ano, com o treinamento exaustivo utilizado, ele compartilhou uma observação alarmante: vários competidores com os quais ele manteve contato ao longo dos anos, desenvolveram, de forma misteriosa, diversos tipos de câncer. Indagamos se ele teria dados para apoiar sua afirmação. Ele disse que suas conclusões se baseavam apenas em observações pessoais.

Especula-se que o exercício excessivo e incessante ative exageradamente a produção e a emissão de citocinas pró-inflamatórias que são prejudiciais a diversos sistemas, processos e mecanismos biológicos.

Vale a pena observar a carga de exercício que é considerada apropriada para estimular adaptações imunológicas benéficas. Também existe um certo grau de subjetividade no que consistiria ser o ideal. No entanto, muitos fisiologistas argumentam que a atividade física moderada, em torno dos 45 minutos, composta por uma caminhada rápida ou um simples jogging, cinco dias por semana, é recomendável para promover a saúde, o bem-estar geral e as adaptações fisiológicas que fortalecem o sistema imunológico. Evidentemente, a medida ideal de atividade física para o bem viver está longe de ser a de um treinamento para um dia de competição deultrarresistência.

Tendo o conhecimento dessas informações, de como a carga em torno do exercício afeta o sistema imunológico, a atenção ao campo da Fisiologia do Exercício e seus recursos se tornam indispensáveis aos atletas e aos integrantes das Forças Especiais. Isso porque as várias técnicas utilizadas por um fisiologista, com o intuito de acelerar o processo de recuperação dos atletas e dos integrantes das Forças Especiais, se tornam ainda mais importantes dentro dessas competições de ultrarresistência e dos protocolos de treinamento das Forças Especiais.

É possível fazer com que os níveis de glicogênio voltem ao normal dentro das 36 horas após uma maratona, se os atletas seguirem um regime apropriado de alimentação, tomarem os suplementos ergogênicos adequados e tiverem tempo suficiente de repouso. Podemos traçar um paralelo entre a forma como funcionam os níveis de glicogênio em nossas células musculares e o nível de gasolina no tanque de um veículo, sendo o glicogênio o equivalente à gasolina de um carro, que fornece a energia necessária para as contrações musculares.

Aliados às técnicas de reposição do glicogênio, outras imposições  na ingestão de diversos suplementos ergogênicos será vital para a restauração e o fortalecimento do sistema imunológico. Assim, será possível diminuir os danos ao organismo com a utilização de algumas dessas técnicas.

Ao mesmo tempo, também é fundamental fortalecer, estimular e diversificar a composição do microbioma para desenvolver e manter um sistema imunológico robusto. Ao longo dos anos, pesquisadores passaram a ter uma melhor compreensão do papel do microbioma e como ele integra e influencia diversos sistemas e funções fisiológicas do organismo.

São, portanto, vários recursos específicos e, às vezes, mais complexos que podem ser utilizados em conjunto por um fisiologista para aumentar e manter a integridade da capacidade fisiológica. O grau de sucesso dessas estratégias depende da disciplina, consistência e adesão aos horários prescritos, distribuídos ao longo das 24 horas do dia, para o consumo das diversas substâncias.

Não queremos e nem devemos dissuadir as pessoas de usufruírem os mais que reconhecidos benefícios das atividades físicas diárias, tanto que enfatizamos os benefícios psicológicos e fisiológicos das programações sensatas e regulares. No entanto, correr durante quatro horas ou mais, como muitos fazem em uma maratona, ou nadar, pedalar e correr durante 10 horas ou mais, como fazem participantes de um Ironman, ficam bem longe de serem consideradas cargas de exercícios que fortaleçam o sistema imunológico de quem quer que seja.

Devemos salientar que, no caso das Forças Especiais, a participação e  envolvimento com essas cargas de treinamento ultraelevadas são vitais para vários objetivos estratégicos dentro de suas unidades.

No entanto, para os atletas que almejam o lazer, em caso de insistência na participação nessas competições de ultrarresistência, recomendamos que os participantes procurem sempre a assistência de um fisiologista ou outro profissional da área, para uma opinião individualizada, de forma a minimizarem riscos desnecessários à saúde. Eventualmente, outra saída é que essas pessoas busquem formas mais convencionais de praticar atividades físicas. No final de sua carreira, o lendário Dr. kenneth Cooper sustentava a ideia de que os benefícios do exercícios devido a eventuais excessos poderiam começar a declinar, levando a uma  redução das defesas imunológicas dos indivíduos.

Ricardo Guerra é Fisiologista do Exercício e tem Mestrado em Fisiologia Esportiva, pela Liverpool John Moores University. Recentemente, o autor prestou consultoria para núcleos da Policia Italiana.

Trabalhou com vários clubes de futebol no Oriente Médio e Europa, incluindo as seleções do Egito e do Catar. Em 2015, foi Fisiologista do Exercício do Olympique de Marseille, época em que o time chegou à final da Copa da França contra o PSG.

Ricardo detém a mais importante licença de treinador da FA — Associação de Futebol da Inglaterra e também da UEFA — União das Associações Europeias de Futebol.

Viajou pelo Mundo, coletando dados e quantificando a capacidade fisiológica de jogadores de vários países. Seus artigos foram publicados em mais de cinco idiomas em várias organizações de notícias. 

Atualmente, o fisiologista está radicado nos Estados Unidos, é candidato a PhD em Fisiologia do Exercício, está escrevendo um livro sobre o futebol brasileiro.

Ricardo aprimorou sua experiência nas técnicas de treinamento da modalidade strongman trabalhando em estreita colaboração com alguns dos principais competidores do mundo. Sendo um entusiasta dessa forma de treinamento, ele adaptou esses métodos para atender às necessidades fisiológicas de vários esportes. Ele pode ser contatado pelo e-mail [email protected]

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