Ovos com larvas e remédios entregues pelo interno que limpava a fossa: mais denúncias no CRAD de Timbó

** Os nomes citados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade dos denunciantes. Os relatos ocorreram dentro do CRAD (Centro de Reabilitação Álcool e Drogas) de Timbó e Indaial. A unidade de Indaial foi fechada e a de Timbó está sendo investigada pelo Ministério Público (ela foi esvaziada e está proibida de receber novos internos).

Emílio

A família de Emílio contratou o CRAD para buscá-lo em casa. Ele conta que recebeu socos e um mata-leão.

“Achei que ia morrer, mas era só o começo. Recebia porrada, mata-leão e apagava. Acordava e começavam tudo de novo. Foram pelo menos umas dez sequências”, relembra.

Ele conta que recebeu uma quantidade tão grande de remédios que passou os três primeiros dias deitado, urinando na cama.

Depois, começaram os trabalhos.

Era obrigado a trabalhar dopado de Haldol, babando, carregando sacos de esterco […] A gente trabalhava da cabanha, de cavalos particular do dono da comunidade. Quem recusava, ele ameaçava zerar o tratamento”.

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Foto: Fábio Ferrari/Misturebas News

Emílio diz que entre os castigos aplicados estava a obrigatoriedade de escrever duas mil vezes a mesma frase em um caderno, como, por exemplo: “não devo abordar o diretor da comunidade”.

Uma das ‘leis’ do lugar era a proibição de perguntar sobre a  família para o diretor. No primeiro ano, Emílio ficou sem contato nenhum com os parentes. Depois desse período, começaram as chamadas em vídeo, com duração de cinco minutos e sempre monitoradas.

Quem aproveitava a chamada e pedia para sair era castigado com o aumento do tempo lá dentro. O diretor dizia para as famílias que o pedido para sair era por conta da abstinência, mas era na verdade pelo horror que a gente vivia. Eu só saí de lá porque minha mãe não acreditou mais nas desculpas de que seu filho nunca estava pronto para sair.

Uma vez Emílio discutiu com um dos monitores e foi espancado por três pessoas.

Levei tapa, chute, cuspe. Uma vez o dono do CRAD me deu um tapa tão forte no ouvido que fiquei quase um mês sem escutar direito.

Emílio passou por duas internações. Lá dentro, durante um período ajudou na cozinha.

A gente recebia comida estragada para cozinhar, que os internos buscavam no lixo do mercado. Os ovos vinham com larvas, minha senhora! […] Nosso trabalho na cozinha não era cozinhar, era muito mais separar o que tava podre. Pão e bolo mofado a gente comia. O monitor ficava do lado obrigando a comer. Às vezes tinha gente que vomitava e ele obrigada a continuar comendo”.

Emílio diz que as agressões resultaram em sequelas psicológicas.

Aquele lugar nunca tratou ninguém. Tudo lembrava um campo de concentração nazista. Foi a pior época da minha vida. Consegui sair, mas tenho traumas do que vivi lá. Hoje, tenho depressão, ansiedade e transtorno de pânico. O que fizeram com a gente não se faz nem com animal.

Gabriel

Longe do CRAD, Gabriel refez a vida. Hoje trabalha e frequenta a igreja.

Ele lembra do período internado com revolta.

Esse lugar é uma fraude, não é só o dono, muitas pessoas estão envolvidas no esquema para tirar dinheiro das famílias.

Gabriel presenciou cenas de agressões, com socos e arma de choque.

Mas o que mais o entristeceu foi a morte de um senhor que, segundo ele, não recebeu atendimento médico.

Eu vi ele morrer. Morreu na cama, durante a madrugada. Estava muito gripado e não levaram no médico.

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Gabriel conta que trabalhou por um tempo na guarita e, durante esse período, anotou quem entrava e saía da comunidade.

Não vinha médico trazer remédio. O psiquiatra vinha na sexta-feira e ficava, no máximo, trinta minutos. Imagina? Trinta minutos para atender 40 pessoas! Ele só ficava lá, não falava com ninguém. Em dois anos, ele me atendeu uma única vez. Quem entregava os remédios era o rapaz que limpava a fossa, também interno da unidade”.

É possível perceber pelas anotações que o entra-e-sai era intenso.

Gabriel anotou muitas vezes “caminhão com residentes” que, segundo ele, significava que o caminhão estava levando os internos para a cabanha, para trabalhar principalmente carregando sacos de esterco. O dono do local possui cavalos de exposição.

O registro de entrada e saída da S10, conforme o denunciante, era a chegada da comida, que vinha dos restos do supermercado, chamada por ele de “lavagem”.

De cueca para não fugir

Um ex-interno relatou ao Misturebas News que, por ‘apresentar risco de fuga’ foi deixado de cueca por uma semana durante o inverno.

Essas e outras denúncias chegaram até o Ministério Público através do Instituto Humaniza. Um homem buscou o instituto afirmando que seu amigo tinha recém saído do CRAD e contou os horrores vividos lá.

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O instituto entrou em contato com este homem e mais quatro ex-internos para reunir as informações e abrir uma Notícia de Fato no MP.

O Humaniza continua acompanhando o caso e deve se reunir com os promotores para discutir o encaminhamento das pessoas após o resgate.

O Instituto vai questionar a quem caberá a responsabilidade de prestar apoio psicológico e médico aos ex-internos e suas famílias, como se dará a responsabilização dos proprietários do local e sobre a situação daqueles ex-internos que voluntariamente decidam pela reabilitação em outras unidades.

Humaniza

O instituto foi fundado em abril de 2023 e reúne intelectuais, ativistas, militantes por direitos humanos, entidades sindicais e parlamentares de diferentes partidos.

O objetivo, segundo os organizadores, é o de lutar por uma cultura de paz, incentivar a educação e as artes e combater apologia às armas, discursos de ódio, perseguições políticas e ataques à educação, à liberdade de cátedra e à diversidade racial e cultural.

O Humaniza já recebeu e deu encaminhamento a diversas outras denúncias como de militarização de crianças, crimes de racismo, crescimento de células nazistas em SC, dentre outras.

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