Leonam Guimarães
Executive Directorate Advisor,
C&T Committee Coordinator
@ AMAZUL | Nuclear Project and Knowledge Management
Desde 2020, o regime global de não-proliferação nuclear e de banimento de testes nucleares enfrenta desafios sem precedentes. O aumento de tensões geopolíticas e a modernização acelerada de arsenais atômicos indicam uma crescente importância das armas nucleares nas relações internacionais – algo não visto desde a Guerra Fria. Países com armas nucleares investem na expansão e aprimoramento de seus armamentos, enquanto tratados-chave sofrem pressões e até retrocessos. Este relatório analisa:
(1) as ações recentes de países-chave (Rússia, China, EUA, Irã e Coreia do Norte) em matéria nuclear;
(2) o status e os desafios enfrentados pelos principais tratados (TNP, CTBT e TPNW); e
(3) o papel e as limitações de organismos internacionais como o Conselho de Segurança da ONU e a AIEA na contenção da proliferação e na verificação de tratados.
Por fim, avalia-se de forma conclusiva os riscos sistêmicos a esse regime internacional fundamental para a segurança global.
Ações Recentes de Países-Chave (desde 2020)
Rússia
Nos últimos anos, a Rússia adotou medidas que abalam pilares do controle nuclear. Em fevereiro de 2023, Moscou suspendeu sua participação no Novo START, último tratado bilateral remanescente com os EUA para limitação de arsenais estratégicos. O presidente Vladimir Putin enfatizou que não se trata de retirada formal; contudo, a suspensão coloca em perigo o último pilar de controle de armas vigente entre as duas maiores potências nucleares, responsáveis juntas por quase 90% das ogivas do mundo. Putin também instruiu a agência nuclear russa (Rosatom) a preparar a capacidade de teste nuclear, declarando que retomaria testes nucleares apenas se os EUA o fizessem primeiro. Essa posição foi reafirmada em várias ocasiões, indicando uma resposta “espelho” às políticas americanas.
Paralelamente, a Rússia tomou um passo alarmante em relação ao Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT). Em outubro de 2023, o parlamento russo votou por unanimidade a revogação da ratificação do CTBT, argumentando responder ao fato de os EUA nunca terem ratificado o tratado. Embora autoridades russas afirmem que Moscou manterá uma moratória de testes nucleares e cooperação com o sistema de monitoramento internacional do CTBT, essa “desratificação” representa um retrocesso preocupante. Foi a primeira vez desde 1990 que a Rússia se desvinculou de um compromisso de testes nucleares, preparando terreno para um possível retorno a ensaios caso outros o façam. De fato, Putin ordenou em 2023 que o local de testes nucleares russo fosse deixado “pronto” para uso, e o ministro da Defesa visitou essas instalações. Analistas alertam que, caso a Rússia retome explosões nucleares – algo não feito por nenhuma nação além da Coreia do Norte neste século – isso poderia inaugurar uma nova corrida armamentista nuclear entre as grandes potências.
Além do campo dos tratados, a guerra na Ucrânia intensificou riscos nucleares. Autoridades russas têm empregado retórica nuclear intimidadora e realizado movimentações como o deslocamento de armas nucleares táticas para Belarus em 2023. Em junho, o presidente bielorrusso confirmou o recebimento de ogivas russas – o primeiro envio de armas atômicas a um país fora da Rússia desde a queda da URSS. Moscou ressalva manter controle dessas armas, mas tal passo mina o espírito de não proliferação, aproximando armamentos nucleares de zonas de tensão europeias. Ademais, a ocupação militar russa da usina nuclear ucraniana de Zaporizhzhia em 2022 gerou uma crise de segurança nuclear que frustrou negociações internacionais. A Rússia chegou a bloquear, em agosto de 2022, a declaração de consenso da Conferência de Revisão do TNP devido a referências à instabilidade em Zaporizhzhia. Em suma, as ações russas desde 2020 – enfraquecendo tratados, fazendo ameaças veladas e realocando armamentos – colocam em xeque normas que vinham limitando a proliferação e os testes nucleares desde o fim da Guerra Fria.
China
A China, embora menos estridente publicamente, tem promovido mudanças com impacto de longo prazo no equilíbrio nuclear. Pequim acelerou significativamente a expansão e modernização do seu arsenal nuclear nos últimos anos. Estimativas independentes sugerem que a China possuía cerca de 280 ogivas nucleares em 2018, mas esse número subiu para aproximadamente 470 ogivas, com a taxa de crescimento acelerando após 2021. O Departamento de Defesa dos EUA já avaliava, em 2022, que a China poderia alcançar 600 ogivas operacionais em curto prazo e até 1000 até 2030. Sinais concretos dessa expansão foram detectados por satélites: a China empreendeu a construção de cerca de 320 novos silos de mísseis intercontinentais em pelo menos três campos de lançamento. Trata-se do maior aumento de capacidade de ICBMs de sua história recente, indicando a intenção de reforçar drasticamente seu poder de dissuasão nuclear.Embora a China seja signatária do CTBT e mantenha uma moratória de testes nucleares, até hoje não ratificou o tratado – uma condição crucial para sua entrada em vigor. Pequim tradicionalmente condiciona a ratificação à postura dos EUA, que também não ratificaram o CTBT. Assim, a permanência da China como um dos nove países cuja ratificação é indispensável para que o CTBT entre em vigormantém a moratória global de testes em situação frágil e dependente apenas do status quo. Além disso, a China tem se mostrado reticente em participar de novos acordos de controle de armas. Convites para envolver-se em negociações trilaterais com EUA e Rússia foram rejeitados, com o argumento de que os arsenais chinês e dos demais estados nucleares reconhecidos pelo TNP (França e Reino Unido) são muito menores que os de Washington e Moscou. Em 2023, Pequim chegou a suspender diálogos bilaterais limitados sobre controle nuclear em protesto a vendas de armas dos EUA a Taiwan. Essa postura dificulta a criação de qualquer estrutura multilateral de controle de armamentos nucleares, justamente no momento em que o arsenal chinês cresce e se torna mais sofisticado.
Por outro lado, a China oficialmente continua comprometida com os objetivos do TNP. É signatária original do tratado como estado nuclear reconhecido e tem apoiado iniciativas de criação de zonas livres de armas nucleares em algumas regiões. Entretanto, a maior assertividade nuclear da China – seja pelo rápido reforço de seu arsenal, seja pela recusa em aderir a limites internacionais adicionais – contribui para aumentar as rivalidades estratégicas. Estados Unidos e Rússia veem a expansão chinesa como fator de desequilíbrio, citando-a para justificar seus próprios programas de modernização. Assim, as ações chinesas desde 2020, embora menos diretamente provocativas do que as russas ou norte-coreanas, representam um desafio estrutural: um cenário onde três superpotências nucleares competem sem acordos limitantes robustos, elevando os riscos de proliferação e corrida armamentista
Estados Unidos
Os Estados Unidos, um dos arquitetos do regime de não proliferação, também tomaram decisões recentes que colocam em risco esse arcabouço. Durante o governo Donald Trump (2017-2021), Washington adotou posturas mais duras e céticas em relação a acordos multilaterais e bilaterais. Em 2020, por exemplo, autoridades americanas consideraram seriamente retomar testes nucleares após quase três décadas de moratória. Uma reunião em maio daquele ano discutiu a possibilidade de conduzir o primeiro teste nuclear dos EUA desde 1992, supostamente para pressionar Rússia e China em futuras negociações. A ideia gerou forte oposição interna e internacional, pois desde 1998 nenhuma potência nuclear havia realizado testes explosivos (apenas a Coreia do Norte), e quebrar esse tabu provocaria uma escalada de tensões. No final, o teste não ocorreu e a moratória unilateral dos EUA foi mantida. Ainda assim, o simples fato de ter sido cogitado evidenciou a erosão do compromisso político com o CTBT.
No plano dos tratados, os EUA seguem até hoje sem ratificar o CTBT, devido à rejeição do Senado em 1999. Assim, permanecem como um dos oito países-chave cuja ratificação é necessária para a entrada em vigor do tratado. Essa posição americana tem servido de justificativa para outros países retardarem ou reverterem seu engajamento – a Rússia usou explicitamente a não ratificação pelos EUA como argumento para revogar a sua. Quanto ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), os EUA continuam formalmente comprometidos, mas ações recentes minaram um de seus pilares: a diplomacia para impedir novas proliferações. Em 2018, o governo Trump se retirou do acordo nuclear com o Irã (JCPOA), reintroduzindo sanções e levando Teerã a retaliar ampliando seu programa (ver seção do Irã). Em 2020, a administração americana tentou invocar o “snapback” de sanções da ONU contra o Irã, argumentando violação iraniana do acordo, mas a iniciativa não teve apoio no Conselho de Segurança – 13 dos 15 membros rejeitaram a legitimidade do pedido dos EUA, que já não faziam parte do JCPOA. Essa dissensão deixou o regime de sanções internacionais ao Irã em situação ambígua e enfraqueceu a frente unida das potências.
Mesmo sob o governo Joe Biden (2021-2025), que reassumiu compromisso com alianças e controle de armas, certos problemas persistem. O Senado americano não retomou o debate sobre o CTBT, e perspectivas de ratificação permanecem remotas no clima político atual. Os EUA concordaram, em janeiro de 2021, em estender o Novo START com a Rússia até 2026, mas após a invasão russa da Ucrânia, todas as inspeções e diálogos do tratado foram congelados – culminando na suspensão russa de 2023. Ademais, Washington se mantém crítico ao TPNW, o tratado de proibição total de armas nucleares. Juntamente com os demais membros da OTAN, os EUA declararam que esse acordo “não reflete o ambiente de segurança” atual e pode minar o regime existente de não proliferação, já que carece de mecanismos de verificação e adesão das potências nucleares. Em suma, embora continue liderando esforços contra a proliferação de casos específicos (como programas do Irã e Coreia do Norte) e reafirme a importância do TNP, os EUA não avançaram em novas obrigações (como CTBT ou TPNW) e seguem modernizando seu arsenal nuclear a longo prazo. Esse paradoxo – de guardião do regime, mas também ator em uma renovada corrida tecnológica nuclear – contribui para os riscos que o regime enfrenta.
Irã
O Irã ocupa posição central nos riscos à não proliferação pós-2020, pois seu programa nuclear avançou a ponto de colocá-lo à beira do status de Estado nuclear limiar. Após a saída dos EUA do acordo JCPOA em 2018 e a reimposição de sanções, Teerã gradualmente deixou de cumprir limites-chave do acordo a partir de 2019. A partir de 2020, essa expansão ganhou velocidade. Hoje, o Irã é o único país não possuidor de armas nucleares que enriquece urânio até 60% de pureza – nível muito acima do necessário para uso civil e próximo ao grau militar (90%). Segundo relatórios do órgão fiscalizador da ONU, o país acumulou, até o final de 2024, mais de 180 kg de urânio enriquecido a 60% U-235. Essa quantidade, se enriquecida adicionalmente para 90%, seria material físsil suficiente para cerca de três a quatro armas nucleares. O estoque total de urânio enriquecido do Irã também cresceu para mais de 6,6 toneladas – muito acima do limite de 300 kg de urânio levemente enriquecido fixado pelo JCPOA. Em outras palavras, o Irã reduziu seu “tempo de breakout” (tempo necessário para produzir material para uma bomba) de aproximadamente um ano (sob o JCPOA) para poucas semanas ou até menos, de acordo com avaliações ocidentais.
Igualmente preocupante é a redução na transparência e na supervisão internacional do programa iraniano. Em fevereiro de 2021, o Irã cessou a implementação voluntária do Protocolo Adicional e de medidas de monitoramento aprimoradas do JCPOA, em resposta à falta de alívio nas sanções. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) tem enfrentado sérias lacunas de monitoramento desde então. Câmeras e sensores adicionais instalados pelo acordo foram desligados ou removidos pelo Irã em 2021-2022, levando o diretor-geral da AIEA a alertar que a agência tinha “visibilidade muito limitada” do programa, que seguia “galopando à frente”. Rafael Grossi, diretor da AIEA, afirmou em 2023 que a situação tende a “piorar” sem diálogo, e que a perda de continuidade de conhecimento sobre as atividades iranianas causa grande inquietação sobre a natureza pacífica do programa. Em setembro de 2023, Teerã deu um passo adicional e barrou a designação de diversos inspetores experientes da AIEA no país, efetivamente expulsando cerca de um terço dos especialistas mais qualificados em enriquecimento que inspecionavam suas instalações. Grossi condenou a medida como “sem precedentes” e prejudicial ao planejamento normal das atividades de verificação.
No campo diplomático, as tentativas de restabelecer o JCPOA após 2021 fracassaram. Negociações indiretas em 2021-2022 não chegaram a um acordo, com diferenças sobre garantias e escopo. Desde então, não há um acordo limitando o programa iraniano, apenas entendimentos informais. Em 2023, surgiram indícios de um arranjo tácito em que o Irã evitaria enriquecer acima de 60% ou acumular muito mais material, em troca de menor pressão internacional. Contudo, esse entendimento não escrito é precário. Enquanto isso, as suspeitas sobre possíveis dimensões militares permanecem: a AIEA ainda busca esclarecimentos do Irã sobre partículas de urânio não declaradas encontradas em locais como Turquzabad, e Teerã não forneceu respostas satisfatórias, mantendo essas investigações estagnadas.
As consequências para o regime de não proliferação são graves. O Irã ainda é membro do TNP e afirma querer apenas um programa pacífico, mas aproxima-se tecnicamente da capacidade de fabricar armas nucleares. Se decidir romper abertamente as restrições do TNP, o impacto seria equivalente ao da Coreia do Norte (que se retirou em 2003 e testou armas depois). Além disso, rivais regionais como a Arábia Saudita ameaçam seguir o mesmo caminho caso o Irã obtenha a bomba. O príncipe herdeiro saudita declarou em 2023 que, se o Irã desenvolver arma nuclear, “nós teremos que obter uma também”. Esse risco de efeito dominó no Oriente Médio demonstra como o avanço do programa iraniano desde 2020 coloca em risco sistêmico o regime de não proliferação, podendo levar a uma nova corrida nuclear regional.
Coreia do Norte
A Coreia do Norte já era um desafio singular ao regime (tendo se retirado do TNP em 2003 e realizado seis testes nucleares até 2017), mas após 2020 o país intensificou ações que agravam os riscos ao banimento de testes e à não proliferação. Apesar de não ter conduzido um novo teste nuclear desde setembro de 2017, Pyongyang sinalizou repetidamente sua prontidão para retomar testes de bombas atômicas. Em 2022, imagens de satélite e informes de inteligência indicaram a reativação de túneis no local de testes de Punggye-ri, sugerindo preparativos para um sétimo teste nuclear. Autoridades sul-coreanas e americanas alertaram que o regime de Kim Jong-un “completou preparativos técnicos” e poderia testar a qualquer momento. Até o início de 2025, o teste não ocorreu, possivelmente por razões políticas ou diplomáticas, mas a expectativa permanece – e cada teste norte-coreano mina a norma de moratória global que vigora desde 1998.
No campo dos mísseis, a Coreia do Norte executou um ritmo recorde de lançamentos balísticos desde 2020, aprimorando o alcance e a sofisticação de seu arsenal. O ano de 2022 foi particularmente ativo, com mais de 70 mísseis disparados, incluindo vários de alcance intercontinental (ICBMs) e lançamentos sobre o território do Japão. Em março e novembro de 2022, Pyongyang testou o ICBM Hwasong-17 – seu maior míssil, capaz de alcançar os EUA continentais. Esses ensaios violam repetidas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, que proíbem qualquer atividade nuclear ou de mísseis pela Coreia do Norte. Contudo, diferentemente do período 2006-2017 (quando cada provocação norte-coreana encontrava resposta unificada do CSNU), agora o Conselho está paralisado. Em maio de 2022, China e Rússia vetaram uma resolução proposta pelos EUA para impor sanções adicionais em resposta aos testes norte-coreanos, marcando a primeira divisão pública no Conselho sobre a Coreia do Norte desde 2006. Todos os demais 13 membros votaram a favor, mas o veto duplo impediu a adoção. Desde então, não houve novas sanções coletivas, o que sinaliza um enfraquecimento do mecanismo internacional de pressão sobre o regime de Kim.
No plano doméstico, a Coreia do Norte consolidou sua condição de estado nuclear de forma irreversível. Em setembro de 2022, a Assembleia Popular Suprema aprovou uma lei que declara a Coreia do Norte um Estado nuclear e estabelece condições de uso de armas atômicas, incluindo o direito de ataque nuclear preventivo se a liderança do país estiver sob ameaça. Kim Jong-un afirmou que não haverá negociações de desarmamento e que “não há retorno” em seu status nuclear. Essa legislação tornou oficial a recusa norte-coreana de qualquer diálogo sobre desnuclearização, enterrando as esperanças de acordos como os tentados em 2018. Em vez disso, Pyongyang enfatiza o aperfeiçoamento qualitativo de suas forças nucleares – revelando, por exemplo, ogivas nucleares táticas em 2023 e testando um míssil balístico intercontinental de combustível sólido (Hwasong-18) em abril de 2023, que reduz o tempo de preparo para lançamento.
Em síntese, a Coreia do Norte permanece como um caso de proliferação consumada à margem do regime internacional, agora ampliando suas capacidades sem restrições. Seus constantes testes de mísseis e potencial retorno aos testes nucleares representam uma afronta direta ao CTBT e aos esforços de desarmamento. Além disso, a inação do Conselho de Segurança devido a divisões internas mina a autoridade das resoluções existentes. O caso norte-coreano também serve de contraponto perigoso a outras nações: em outubro de 2023, o chefe da AIEA, Rafael Grossi, alertou que a comunidade internacional “não pode falhar com o Irã como falhou com a Coreia do Norte”, que expulsou inspetores e desenvolveu bombas. Ou seja, o precedente da Coreia do Norte ameaça se repetir se outros países perceberem que o custo de desafiar o regime de não proliferação não é insuportável.
Tratados Internacionais: Status e Desafios
Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP)
O TNP, em vigor desde 1970 e com 191 Estados-membros, continua sendo a pedra angular do regime de não proliferação. Ele se apoia em três pilares: não proliferação, desarmamento e uso pacífico da energia nuclear. Desde 2020, contudo, o tratado e seu equilíbrio interno enfrentam desafios sérios:
- Fracasso das Conferências de Revisão: As conferências quinquenais de revisão do TNP têm o objetivo de avaliar a implementação e buscar consensos para avanços. Entretanto, a conferência de 2020 (adiada para agosto de 2022 pela pandemia) terminou sem adoção de um documento final, devido à oposição da Rússia sobre trechos relacionados à usina ucraniana de Zaporizhzhia. Foi a segunda conferência consecutiva a fracassar (a de 2015 também não teve acordo final), expondo divisões profundas. Em 2022, enquanto a maioria dos 151 Estados presentes tentou compromissos, a delegação russa bloqueou o consenso na última hora, recusando até formulações brandas que mencionavam a necessidade de controle ucraniano sobre Zaporizhzhia. Esse impasse evidenciou como disputas geopolíticas (no caso, a guerra na Ucrânia) podem paralisar os fóruns do TNP, impedindo até mesmo reafirmações básicas do compromisso com os objetivos do tratado.
- Proliferação horizontal e riscos regionais: O TNP conseguiu limitar a proliferação a poucos casos isolados nas últimas décadas (além da Coreia do Norte, que saiu do tratado, nenhuma nova potência nuclear emergiu oficialmente). Mas o período recente viu o avanço de programas sensíveis no Irã (ainda no TNP) e na Coreia do Norte (fora dele), testando os limites da resposta internacional. A possibilidade de o Irã alcançar armamento nuclear sob o guarda-chuva do TNP seria um golpe sem precedentes ao tratado. Além disso, surgem ameaças de proliferação reativa: líderes da Turquia e Arábia Saudita sugeriram que não ficarão de braços cruzados se vizinhos adquirirem armas nucleares. Esses sinais indicam que a credibilidade do TNP em impedir novas proliferações está sendo questionada – especialmente em regiões tensas como o Oriente Médio e o nordeste da Ásia.
- Estagnação do Desarmamento: As cinco potências nucleares reconhecidas pelo TNP (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) continuam modernizando seus arsenais, e o arsenal global operacional de ogivas tem crescido nos últimos anos. Após o fim do tratado INF em 2019 e com o Novo START em risco de expirar em 2026, não há novos acordos de desarmamento à vista. Pelo contrário, EUA e Rússia ampliaram a dependência em armas nucleares táticas e criam novos vetores (como mísseis hipersônicos), enquanto a China expande seu arsenal. Em janeiro de 2022, num raro vislumbre de unidade, os cinco membros permanentes do CS (P5) emitiram uma declaração conjunta afirmando que “uma guerra nuclear não pode ser vencida e não deve ser jamais travada”. Todavia, essa mensagem foi ofuscada semanas depois pela guerra na Europa e pelas insinuações nucleares russas. Muitos países não nucleares criticam a falta de progresso no cumprimento do Artigo VI do TNP (desarmamento). Essa frustração levou à criação do Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPNW) fora do âmbito TNP (ver adiante). Assim, o pilar de desarmamento do TNP está fragilizado, o que por sua vez alimenta desconfianças e divisões entre Estados “não armados” e “armados”.
- Uso Pacífico e questões de salvaguardas: O TNP também promove a cooperação em energia nuclear para fins pacíficos, sob garantia de inspeções. Nesse campo, um desafio emergente é conciliar novos projetos nucleares com a não proliferação. Por exemplo, o acordo de submarinos nucleares AUKUS (Austrália-Reino Unido-EUA) envolve transferir à Austrália tecnologia de propulsão naval nuclear (com potencial uso de urânio altamente enriquecido). Isso preocupa alguns membros do TNP (como China e Indonésia) pois cria um precedente de retirada de material nuclear de inspeções da AIEA para uso militar não explosivo. Embora permitido pelas regras, é um dilema técnico que o regime terá de resolver para que não surjam brechas utilizáveis por atores mal-intencionados. No caso iraniano, discute-se se o TNP tem instrumentos suficientes para lidar com violações prolongadas das salvaguardas sem uma resposta política forte.
Em resumo, o TNP permanece indispensável, mas passa por uma crise de efetividade e confiança. A não proliferação enfrenta testes em campo (Irã, Coreia do Norte) sem soluções fáceis; o desarmamento emperrado gera divisões e abriu espaço para o TPNW; e até os usos pacíficos levantam questões novas. O sucesso contínuo do TNP em evitar a proliferação não é garantido se seus membros não reforçarem sua autoridade e não encontrarem caminhos de compromisso, especialmente entre as potências nucleares e o resto.
Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT)
O CTBT, adotado em 1996, busca proibir todas as explosões nucleares no planeta, seja para fins militares ou civis. Ele estabeleceu uma importante norma internacional contra testes nucleares, contribuindo para interromper a corrida armamentista qualitativa desde o fim da Guerra Fria. Entretanto, o CTBT ainda não entrou em vigor formalmente. Isso ocorre porque 8 países do anexo 2 (com capacidades nucleares ou reatores relevantes) não ratificaram o tratado: China, Estados Unidos, Índia, Paquistão, Coreia do Norte, Israel, Irã e, desde 2023, a Rússia (que retirou sua ratificação). Apesar disso, até recentemente a maioria desses Estados respeitava uma moratória voluntária de testes – o último teste nuclear declarado havia sido realizado pela Coreia do Norte em 2017.
A partir de 2020, a norma global contra testes enfrentou retrocessos e perigos:
- Revés russo: A Rússia, que havia ratificado o CTBT em 2000, anunciou em 2023 a revogação dessa ratificação, alegando querer ficar em pé de igualdade com os EUA (que não ratificaram). Essa decisão não significa que Moscou retomará testes imediatamente, segundo diplomatas russos, mas foi acompanhada de declarações preparando essa possibilidade. Putin afirmou que se os EUA realizarem um teste, a Rússia fará também. Além disso, Putin e outros oficiais mencionaram publicamente supostas atividades nos locais de teste americanos e a necessidade de a Rússia estar pronta. Em paralelo, fontes independentes confirmam que Rússia, EUA e China têm modernizado suas instalações de teste subterrâneo nos últimos anos. A revogação russa foi amplamente condenada – o Secretário Executivo da CTBTO chamou-a de “decepcionante e profundamente lamentável”– pois mina os esforços de décadas para formalizar o CTBT e gera dúvidas sobre a continuidade da moratória.
- Considerações de teste pelos EUA: Embora os EUA mantenham desde 1992 uma moratória, houve sinais preocupantes. Em 2020, altos funcionários do governo Trump discutiram retomar testes nucleares para ganhar vantagem em negociações com a Rússia e China. Não houve decisão final, e o governo Biden não seguiu essa linha. Ainda assim, a falta de ratificação americana, somada a esses episódios, enfraquece a credibilidade dos EUA em pedir contenção a outros países. Washington argumenta que continua aderindo ao espírito do CTBT (mantendo a moratória) e que a Rússia não precisava revogar nada, mas o fato é que a posição americana serve de pretexto para outros não se vincularem legalmente.
- Testes norte-coreanos e possíveis novos testes: A Coreia do Norte permanece o único país a ter feito testes nucleares no século XXI (2006-2017). A qualquer momento, caso Pyongyang realize um sétimo teste, haverá um rompimento concreto da moratória internacional após um hiato de anos, o que pode pressionar outros países a seguir o exemplo. A ausência de vigor do Conselho de Segurança (como visto em 2022) significa que a resposta a um novo teste norte-coreano pode ser limitada a condenações verbais e sanções unilaterais, enfraquecendo a força da norma.
- Entrada em vigor distante: Com a recente postura da Rússia, a lista de holdouts críticos do CTBT agora inclui todas as grandes potências nucleares (EUA, China e Rússia) exceto França e Reino Unido. Índia e Paquistão, que têm arsenais consideráveis, nunca aderiram e condicionam fazê-lo a questões de segurança regional. Israel e Irã tampouco ratificaram. Dessa forma, é improvável que o CTBT entre em vigor num futuro próximo, mantendo-se como um instrumento em espera. A organização provisória (CTBTO) segue operando a Rede Internacional de Monitoramento, que teve sucesso em detectar até os testes norte-coreanos, provando seu valor. No entanto, sem vigência, não há possibilidade de inspeções no terreno e o regime carece de poder legal pleno.
Em resumo, o regime de banimento de testes nucleares está sob ameaça. O “tabu” de testes, vigente por mais de 25 anos, corre o risco de se quebrar se alguma grande potência – ou a Coreia do Norte – detonar um artefato de novo. Isso teria efeitos cascata: líderes e especialistas alertam que seria o início de uma nova era de corridas nucleares e desenvolvimento de ogivas. Assim, o CTBT vive uma contradição: amplamente respeitado de fato, mas enfraquecido politicamente. Proteger a norma de não testar é vital para evitar uma escalada qualitativa dos arsenais (por exemplo, desenvolvimento de novas gerações de ogivas) e manter as portas abertas para futuros acordos de desarmamento.
Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPNW)
O TPNW, adotado em 2017 e em vigor desde janeiro de 2021, representa uma abordagem diferente: ao invés de medidas gradativas, ele proíbe completamente as armas nucleares – sua posse, uso, desenvolvimento e até ameaças de uso. É um tratado impulsionado por mais de 120 países não possuidores, fundamentado nas consequências humanitárias catastróficas de qualquer explosão nuclear. Em teoria, ele complementa o TNP ao avançar o objetivo de eliminação total das armas nucleares. Na prática, entretanto, o TPNW enfrenta desafios de legitimidade e eficácia dentro do regime internacional:
- Adesão limitada (sem potências nucleares): Até o fim de 2024, 73 países ratificaram o TPNW e 94 o assinaram, refletindo um apoio significativo do Hemisfério Sul e de nações sem arsenais. Contudo, nenhum dos nove Estados com armas nucleares aderiu, nem seus principais aliados militares (membros da OTAN, Japão, Austrália, etc.). Esses países boicotaram as negociações do tratado e declararam oposição ao mesmo. A OTAN, por exemplo, afirmou coletivamente que o TPNW “coloca em risco a arquitetura global de não proliferação e desarmamento” por ignorar as realidades de segurança. Como resultado, o TPNW carece da participação daqueles que realmente detêm arsenais, o que limita drasticamente seu impacto prático imediato – nenhuma ogiva foi eliminada em função dele, até agora.
- Tensão com o TNP?: Os defensores do TPNW sustentam que ele complementa o Artigo VI do TNP, fornecendo um caminho claro para o desarmamento completo, e não pretende substituir o TNP. Já críticos argumentam que o TPNW pode enfraquecer o TNP ao criar um fórum paralelo e ao supostamente deslegitimar políticas de dissuasão nuclear antes que existam condições de segurança para o desarmamento. Até o momento, não houve choque direto – países que aderiram ao TPNW continuam no TNP. Contudo, em ambientes diplomáticos, essa dualidade gera divisões: nas conferências do TNP, muitos Estados do TPNW pressionam por linguagem mais dura de desarmamento, enquanto potências nucleares bloqueiam tais menções, resultando em impasses.
- Implementação e infraestrutura: O TPNW realizou sua 1ª Reunião de Estados-Partes em junho de 2022, em Viena. Ali adotou-se uma Declaração de Viena, que condena qualquer ameaça de uso de armas nucleares (uma clara referência à Rússia, sem citá-la) e reafirma o compromisso com a eliminação total. Foi delineado também um plano de ação com 50 pontos, incluindo a criação de estruturas para verificar futuras destruições de arsenais e assistência a vítimas de testes e uso de armas nucleares. Contudo, muitos desses pontos só ganharão vida se e quando Estados possuidores aderirem – algo distante no horizonte. Enquanto isso, os membros do TPNW trabalham para universalizar o tratado, promovendo-o em fóruns da ONU e através da sociedade civil (por exemplo, campanhas de conscientização pública e pressões para desinvestimento em indústrias de armas nucleares).
- Efeito normativo e moral: Um ponto positivo para o TPNW é que ele reforça o estigma contra armas nucleares em partes da opinião pública mundial e entre países não alinhados às potências. Em um momento de renovada retórica nuclear (como ameaças na guerra da Ucrânia), a declaração de Viena do TPNW enfatizou que “qualquer uso ou ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível”. Essa postura ressoa com o direito humanitário e pode gradualmente influenciar políticas – por exemplo, vários bancos e fundos soberanos decidiram não investir em empresas ligadas a armas nucleares, citando o TPNW.
Em suma, o TPNW lançou a semente de uma nova norma de proibição absoluta, mas no curto prazo enfrenta forte resistência do status quo nuclear. O regime internacional vive assim uma certa cisão: a maioria dos Estados apoia a proibição total, enquanto os Estados nucleares e seus aliados a rejeitam. O desafio será evitar que essa divisão prejudique a cooperação dentro do TNP e encontrar formas de, no futuro, engajar as potências armadas no espírito do TPNW. Até lá, o tratado atua mais como pressão moral e política do que como mecanismo efetivo de desarmamento – mas já é um sintoma da insatisfação de muitos países com o ritmo lento de cumprimento das promessas de desarmamento no TNP.
Organismos Internacionais: Papel e Limitações
Conselho de Segurança da ONU
O Conselho de Segurança (CS) historicamente desempenhou papel central na resposta a casos de proliferação nuclear – impondo sanções a países violadores e legitimando diplomaticamente acordos (como fez ao endossar o JCPOA com a Resolução 2231). Porém, desde 2020, o CS tem enfrentado crescente paralisia em questões de não proliferação, devido principalmente a desavenças entre as grandes potências:
- Coreia do Norte: Entre 2006 e 2017, o CS aprovou sucessivas resoluções unânimes sancionando a Coreia do Norte a cada teste nuclear ou lançamento de míssil balístico importante. Esse consenso ruiu em 2022. Quando Pyongyang realizou múltiplos testes de ICBM, os EUA propuseram reforçar sanções da ONU (incluindo cortar exportações de petróleo ao Norte), mas em maio de 2022 China e Rússia vetaram a resolução. Os outros 13 membros votaram a favor, sinalizando amplo apoio à medida. Foi a primeira vez que vetos públicos ocorreram em resposta às ações norte-coreanas desde que o tema entrou na agenda do CSNU em 2006. Desde então, embora violações continuem, o CS limitou-se a reuniões de emergência e comunicados informais de parte dos membros, sem novas resoluções. Esse impasse resulta do alinhamento geopolítico: China (vizinha e aliada informal de Pyongyang) e Rússia (buscando evitar pressões ocidentais em meio à crise na Ucrânia) não querem aumentar sanções. A consequência é que o principal órgão da ONU deixou de reagir efetivamente ao desenvolvimento nuclear norte-coreano, enfraquecendo a autoridade internacional sobre o regime de Kim.
- Irã: O CS vive situação atípica com o Irã. Em 2015, todos os membros apoiaram a Resolução 2231, que aprovou o acordo nuclear e estabeleceu um mecanismo de reversão de sanções (snapback) se o Irã violasse gravemente o acordo. Quando os EUA se retiraram do JCPOA em 2018, eles perderam direito de invocar o snapback aos olhos de praticamente todos. Em 2020, a administração Trump tentou unilateralmente declarar restabelecidas as sanções da ONU contra o Irã, mas 14 dos 15 membros do Conselho rejeitaram essa posição (apenas a República Dominicana acompanhou os EUA inicialmente). Houve uma situação sem precedente: os EUA insistindo que as sanções estavam válidas, e os demais ignorando. Na prática, o embargo de armas da ONU expirou em 2020 conforme previsto, e restrições a mísseis expiraram em 2023, sem consenso para estendê-las. Em setembro de 2023, EUA e E3 (Europa) moveram no CSNU para condenar a expulsão de inspetores da AIEA pelo Irã, mas Rússia e China se opuseram a qualquer ação punitiva, culpando a saída dos EUA do acordo como causa raiz. Assim, no caso iraniano, o CS encontra-se também dividido: ocidentais e seus aliados pressionando por firmeza, Rússia e China protegendo o Irã de novas sanções. Isso reduz a influência do Conselho em moldar uma solução ou punir o avanço nuclear iraniano, deixando a questão principalmente para tratativas indiretas entre as partes.
- Guerra na Ucrânia e implicações nucleares: A invasão russa da Ucrânia em 2022 e a subsequente deterioração das relações P5 contaminam todo o trabalho do Conselho. Como a Rússia é membro permanente com poder de veto, o CS não pode nem mesmo condenar formalmente ameaças nucleares feitas por um de seus membros. Por exemplo, quando Putin colocou as forças nucleares russas em alerta elevado ou quando houve retórica sobre uso de armas nucleares na guerra, o CSNU não teve como responder unificadamente. A questão da segurança das usinas ucranianas (Zaporizhzhia) foi discutida no Conselho, mas qualquer resolução robusta esbarrou no veto russo. Esse contexto aumenta a sensação de impotência do Conselho em enfrentar os maiores riscos nucleares atuais, especialmente quando envolvem diretamente um membro P5.
Em resumo, o Conselho de Segurança está limitado por divisões políticas internas no tratamento de proliferação nuclear pós-2020. Se antes atuava como guarda-chuva legitimador (ex.: sanções ao Irã e Coreia do Norte que forçaram negociações), hoje vê repetidamente sua ação bloqueada por vetos concorrentes. Isso transfere o foco para ações unilaterais ou coalizões fora da ONU, o que enfraquece a resposta coletiva. Ainda que os comitês de sanções existentes (como os da Coreia do Norte) continuem tecnicamente em vigor, a falta de atualização e implementação rigorosa reduz sua eficácia. O cenário atual demonstra a limitação estrutural do CSNU: quando os interesses vitais das grandes potências divergem, o sistema de segurança coletiva estagna, inclusive na área de não proliferação nuclear.
Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA)
A AIEA, agência autônoma sob a ONU, é o braço técnico essencial do regime de não proliferação, encarregada de verificar se os materiais nucleares em usos pacíficos não são desviados para fins militares. Seu papel abrange desde inspeções de salvaguardas no âmbito do TNP até monitoramentos específicos acordados em pactos como o JCPOA. Nos últimos anos, a AIEA tem atuado sob circunstâncias cada vez mais desafiadoras:
- Irã e a erosão das salvaguardas reforçadas: Conforme descrito, a AIEA perdeu acesso significativo no Irã após 2020. Ainda realiza inspeções regulares previstas no Acordo de Salvaguardas do TNP, mas sem o Protocolo Adicional (que permitia inspeções mais intrusivas em curto prazo) e sem os dispositivos de monitoramento contínuo do JCPOA, sua visibilidade é limitada. Grossi alertou que não conseguir atestar a natureza exclusivamente pacífica do programa iraniano traria instabilidade. A AIEA conseguiu manter por um tempo um arranjo temporário com o Irã (armazenando dados das câmeras desligadas para eventual entrega futura), mas em junho de 2022 esse acordo colapsou quando o Irã desligou câmeras em retaliação a uma resolução do Conselho de Governadores da AIEA que o criticava. Apesar de visitas de Grossi a Teerã e algumas promessas de cooperação (como em março de 2023), na prática pouco progresso ocorreu. A expulsão de inspetores-chave em 2023 agravou a situação. Assim, a AIEA está “no escuro” sobre certos aspectos do programa iraniano, podendo apenas estimar quantidades de material pelos meios remanescentes. Essa limitação complica uma eventual retomada de acordo, pois reconstruir o histórico das atividades será difícil sem lacunas.
- Coreia do Norte: A AIEA foi expulsa da Coreia do Norte em 2009 e desde então não tem presença no país. Ela monitora à distância (imagens de satélite, dados abertos) e produz relatórios anuais inferindo as atividades nucleares norte-coreanas. Essa ausência de inspeções in loco impede qualquer capacidade de verificação direta e coloca a AIEA em papel apenas consultivo no dossiê. Grossi tem repetido que a AIEA está pronta para retornar à Coreia do Norte se um acordo político permitir, mas por ora a agência assiste de fora o avanço do programa de Pyongyang, incluindo a operação do reator de plutônio de Yongbyon e o possível preparo de testes.
- Outros casos: A AIEA também lida com casos como a Síria (onde uma instalação secreta destruída em 2007 foi considerada possivelmente um reator para armas; a Síria não cooperou com esclarecimentos) e questões gerais de implementação de salvaguardas. Esses casos permanecem sem resolução completa, ilustrando as dificuldades da agência quando um Estado simplesmente se recusa a colaborar.
- Limitações estruturais: A AIEA não possui poder de polícia (imposição). Seu mandato é reportar violações ou preocupações ao Conselho de Segurança da ONU, que então decide medidas. Isso funcionou no passado com Irã (relatório ao CS em 2006 levou a sanções e depois ao JCPOA) e Líbia (que revelou programa secreto e desistiu em 2003), por exemplo. Mas conforme discutido, o CSNU está paralisado em muitos casos atuais. Assim, mesmo quando a AIEA faz seu trabalho técnico e identifica não conformidades, a resposta punitiva ou corretiva depende de vontades políticas alheias. Atualmente, a agência formalmente reconhece que o Irã está fora dos limites do JCPOA e não responde satisfatoriamente sobre sítios não declarados – mas o Conselho não agiu à altura, deixando a AIEA em posição de simplesmente continuar tentando diálogo.
- Recursos e novos desafios: A AIEA opera um vasto sistema de inspeções em mais de 180 países, cobrindo milhares de instalações nucleares pacíficas. Nos últimos anos, seu orçamento e recursos humanos têm sido questionados face ao aumento de tarefas (como inspeções adicionais no Irã até 2018, ou possivelmente no futuro monitorar um acordo com a Coreia do Norte). Há também desafios tecnológicos, como garantir a autenticidade de ogivas a serem desmanteladas (caso tratados de desarmamento avancem) – área fora do escopo tradicional da AIEA, mas na qual ela poderia ser chamada a atuar. A questão do AUKUS mencionada trouxe para o radar da AIEA a necessidade de desenvolver salvaguardas para combustível nuclear embarcado em submarinos, algo nunca feito antes.
Em síntese, a AIEA continua a ser um pilar técnico confiável, com elevado profissionalismo e ferramentas de verificação – por exemplo, detectou rapidamente as partículas de urânio 84% no Irã em 2023 e notificou membros. Contudo, suas limitações ficam evidentes quando a cooperação estatal cessa. Sem acesso ou sem respaldo político do Conselho de Segurança, a agência não pode fazer milagres. Isso enfraquece o regime de não proliferação, pois a confiança mútua entre estados de que vizinhos não desviam programas civis para militares baseia-se na habilidade da AIEA em garantir tal coisa. Se países começam a ignorar ou restringir a AIEA (como Irã e Coreia do Norte fizeram), o alicerce do TNP estremece. Apesar de tudo, a AIEA tem adaptado medidas temporárias e continua chamando atenção do mundo para esses problemas, tentando evitar que se normalizem.
Conclusão: Avaliação dos Riscos Sistêmicos
A partir de 2020, o regime internacional de não proliferação e de banimento de testes nucleares entrou em uma fase de risco sistêmico elevado. Diversos fatores interligados alimentam esse quadro preocupante:
- Erosão de compromissos e confiança entre as grandes potências: A rivalidade renovada entre Estados Unidos, Rússia e China reduziu o espaço para cooperação em controle de armas. Tratados bilaterais e multilaterais estão ruindo ou estagnados – INF encerrado, Novo START suspenso e possivelmente expirando sem substituto, CTBT longe de vigorar. A falta de diálogo e transparência aumenta chances de mal-entendidos e acirra uma nova corrida armamentista nuclear, inclusive com introdução de sistemas mais perigosos. Como observado pelo SIPRI, todos os nove estados nucleares estão modernizando arsenais e alguns implantando novos armamentos nucleares. O número de ogivas ativas prontas para uso imediato inclusive cresceu em 2023 em comparação a 2022 – invertendo décadas de declínio e sugerindo que a tendência de aumento “provavelmente acelerará nos próximos anos, o que é extremamente preocupante”. Esse ambiente estratégico torna mais difícil manter e fortalecer regimes como o TNP e o CTBT.
- Desafios de proliferação regional não resolvidos: Irã e Coreia do Norte representam falhas (potencial e real, respectivamente) do sistema de não proliferação. A Coreia do Norte já mostrou que é possível driblar as salvaguardas, sair do TNP e obter armas nucleares, arcando apenas com sanções econômicas (que, com o tempo, muitos países acabam contornando). O Irã, por sua vez, expõe as ambiguidades dentro do TNP – permanecendo no tratado, mas acumulando capacidade quase armamentista. Se Teerã acabar conseguindo armamento nuclear ou mesmo ficando à um passo do armamento sem punição eficaz, outros Estados podem concluir que o TNP não basta para sua segurança. O caso saudita mencionado (MBS indicando buscar uma bomba se Irã tiver) é emblemático. Também na Ásia, debates internos na Coreia do Sul e até no Japão sobre adquirir capacidade nuclear emergiram diante das ameaças norte-coreanas e da dúvida sobre a proteção americana. Ou seja, o risco de proliferação em cascata voltou ao horizonte – algo que o TNP conseguiu evitar por décadas, mas que requer renovado vigor político para continuar evitando.
- Fragilização de normas contra uso e testes de armas nucleares: Por muitos anos, existiu um consenso tácito de que armas nucleares serviriam apenas para dissuasão, nunca para uso real em batalha, e que novos testes não eram necessários. Nos últimos tempos, líderes autocráticos desafiam esse tabu. As ameaças nucleares explícitas ou implícitas da Rússia durante a guerra na Ucrânia – e a falta de punição internacional clara a elas – corroem o chamado “tabu do uso nuclear”. Se um Estado nuclear convencionalmente inferior sentir que pode chantagear o mundo com armas atômicas para alcançar objetivos (como tentar deter o apoio ocidental à Ucrânia), outros podem seguir o exemplo. Quanto aos testes, o movimento da Rússia no CTBT e a possível retomada de testes pela Coreia do Norte indicam que o tabu do teste nuclear também está sob ataque. A continuidade de uma moratória global depende de muita cautela: qualquer teste pela Coreia do Norte quase certamente levará a respostas em cadeia (Coreia do Sul já discute se deveria solicitar exercícios nucleares conjuntos com EUA; Japão poderia reforçar militarmente; e nos EUA alguns legisladores pedem investimentos para testes rápidos caso necessário). Um teste por uma grande potência como Rússia ou EUA seria ainda mais devastador normativamente, praticamente acabando com o regime de não testes e inaugurando uma era de proliferação qualitativa sem amarras.
- Paralisia de mecanismos coletivos de resposta: Conforme analisado, o Conselho de Segurança da ONU está disfuncional nas questões nucleares mais urgentes, devido a vetos de seus próprios membros interessados. Isso significa que não existe hoje uma autoridade global capaz de reagir com credibilidade a uma violação do TNP ou a um teste nuclear. As respostas acabam fragmentadas: sanções unilaterais, declarações em assembleias da ONU, etc. Sem unidade, o poder dissuasório das punições diminui. Países proliferadores podem fazer leverage das divisões (Irã se apoia em Rússia/China; Coreia do Norte idem) para escapar do pior. A AIEA, por sua vez, apesar de altamente competente tecnicamente, fica de mãos atadas se os países não cooperam e se o Conselho não age com seus relatórios. Essa ausência de reforço da lei internacional enfraquece todo o regime: tratados são tão fortes quanto sua verificação e aplicação.
- Divisão normativa entre Estados nucleares e não nucleares: O surgimento do TPNW, embora bem-intencionado, cristaliza uma fratura: de um lado, a maioria dos países impacientes com a lentidão do desarmamento; de outro, as potências nucleares afirmando que o desarmamento não pode ser apressado sob pena de prejudicar a segurança. Se essa lacuna de perspectivas aumentar, os fóruns de diálogo podem se tornar improdutivos (como as conferências do TNP que falharam). Há o risco de os Estados sem armas perderem a fé na via do TNP e passarem a apoiar somente a via de proibição total, enquanto Estados com armas ignoram esse movimento. Isso levaria a um enfraquecimento da legitimidade universal tanto do TNP quanto do novo tratado. O ideal seria reconectar essas agendas – por exemplo, usando o impulso moral do TPNW para buscar passos concretos de desarmamento dentro do TNP. Porém, até agora as potências rejeitaram tal ligação.
O regime internacional de não proliferação nuclear e de banimento de testes vive um dos momentos mais delicados de sua história. As barreiras contra a disseminação de armas nucleares e contra seu uso/teste estão sob estresse, ao mesmo tempo em que a necessidade dessas barreiras é maior do que nunca, diante de crises de segurança e desconfianças crescentes. O mundo em 2025 se depara com a possibilidade real de mais países buscando arsenais nucleares, de mais testes nucleares acontecendo, e até de um conflito nuclear limitado ser cogitado, caso a diplomacia preventiva falhe.
Evitar esses cenários exige ação coletiva renovada. Algumas medidas-chave apontadas por analistas incluem: retomar o diálogo EUA-Rússia e trazer a China para entendimentos básicos de estabilidade; reforçar mecanismos de verificação (dando à AIEA o apoio necessário para lidar com Irã e outros casos); fortalecer a normatização do “não uso” (talvez com declarações conjuntas das potências, similares à de 2022, mas com seguimento); e encontrar compromissos entre apoiadores do TPNW e as potências nucleares para avançar o desarmamento de forma realista. O custo da inação ou de erros de cálculo é altíssimo – em última instância, a erosão do regime de não proliferação aumenta o risco de uma guerra nuclear, que seria catastrófica para a humanidade. Manter e revitalizar esse regime internacional, portanto, permanece um imperativo de segurança global.
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