A Importância de uma Base Industrial de Defesa

A partir da esquerda sentido horário: Fragata Classe Tamandaré F-200, Aeronave Multimissão KC-390, Missil Antinavio MANSUP e Viatura Blindada Transporte de Tropas, Média sobre Rodas Guarani

Darc Costa

Como dizia o velho mestre Cícero, há dois mil anos, no Senado de Roma: a história é a mestra da vida. De fato, é ela quem nos ensina o valor de um país possuir uma base industrial de defesa sólida, construída a partir da inter-relação entre tecnologia, desenvolvimento e segurança nacional. Por isso, é fundamental revisitar a trajetória dessas conexões ao longo dos últimos cem anos no Brasil.

O primeiro ciclo de pesquisa e desenvolvimento voltado à segurança nacional teve início na década de 1930, impulsionado pelo cenário mundial conturbado que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Apesar dos esforços empreendidos, no início dos anos 1940 o avanço tecnológico brasileiro foi significativamente limitado em razão de um acordo de cooperação militar firmado com os Estados Unidos durante a guerra — parceria que se estendeu ao pós-guerra.

Esse acordo resultou no fornecimento de equipamentos militares aos soldados brasileiros a preços reduzidos, com financiamento facilitado e suporte completo de manutenção pelos norte-americanos. Embora vantajosa a curto prazo, essa dependência freou o desenvolvimento de soluções tecnológicas próprias.

Ainda assim, já naquele momento, começava a se consolidar nas Forças Armadas brasileiras a consciência da importância de investir em pesquisa e desenvolvimento para garantir a autonomia na produção de material bélico. Foi dessa visão que surgiram iniciativas estruturantes:

  • Força Aérea criou o atual Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA);
  • Marinha instituiu o Instituto de Pesquisas da Marinha (IPQM); e o,
  • Exército desenvolveu o Centro Tecnológico do Exército (CTEx).

Desde então, as três Forças Armadas têm desempenhado papel fundamental no fortalecimento da indústria de defesa nacional, estabelecendo uma parceria estratégica com o setor privado, que respondeu positivamente a esse esforço conjunto. No final da década de 1980, os investimentos realizados nas décadas anteriores levaram ao auge da base industrial de defesa brasileira. Naquele período, o país consolidou-se como o oitavo maior exportador mundial de material bélico, resultado de políticas eficazes de fomento à pesquisa e de uma atuação comercial bem planejada entre os anos 1970 e 1990. Além disso, mais de 90% dos equipamentos utilizados pelo Exército Brasileiro eram produzidos em território nacional.

Entretanto, no início da década de 1990, a conjuntura internacional mudou drasticamente. O fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética geraram um excedente global de armamentos acumulados durante o período de tensão geopolítica.

Simultaneamente, o discurso da globalização ganhou força, acompanhado pela ideia de soberania limitada, eliminação de barreiras tarifárias e exaltação da competitividade. Essa nova ordem, impulsionada pelo neoliberalismo, levou ao quase desmonte da base industrial de defesa brasileira e à redução significativa das atividades de pesquisa e desenvolvimento, especialmente nos centros que sustentavam a base científico-tecnológica da área de defesa.

A partir de então, os países centrais passaram a oferecer continuamente equipamentos militares a preços muito abaixo do custo real — geralmente já superados tecnologicamente —, inibindo os esforços de pesquisa e desenvolvimento militar nas nações em desenvolvimento. Essa postura ampliou o fosso científico-tecnológico entre países ricos e pobres, enfraqueceu a capacidade produtiva das nações do Terceiro Mundo e alimentou a crença de que apenas os países desenvolvidos deveriam manter Forças Armadas — pensamento conhecido como Doutrina MacNamara.

É evidente que o cenário atual favorece a produção de equipamentos militares nos países mais ricos, especialmente nos Estados Unidos, que continuam a liderar o desenvolvimento tecnológico global.

No Brasil, os efeitos do retorno ao discurso da austeridade têm sido sentidos de forma intensa, impondo desafios ainda maiores aos centros de pesquisa nacionais, inclusive os militares. Essa realidade compromete seriamente o desenvolvimento da tecnologia voltada à segurança nacional e limita nossa capacidade de exercer plenamente a soberania.

Paralelamente, três fatores vêm se mostrando especialmente críticos para a saúde da Base Industrial de Defesa (BID) do país:

  • A falta de escala na produção das indústrias de defesa remanescentes, resultado direto dos cortes orçamentários que reduzem a demanda interna das Forças Armadas;
  • As dificuldades de exportação, agravadas por um câmbio frequentemente sobrevalorizado;
  • A ociosidade de muitas linhas de produção, projetadas para atender demandas de mobilização muito superiores às observadas em tempos de paz.

Além desses fatores, a conjuntura nacional é marcada por uma atitude social geralmente desfavorável aos gastos com defesa, o que agrava ainda mais o cenário.

Diante disso, tanto o contexto nacional quanto o internacional vêm promovendo o desmonte da nossa base industrial de defesa e o encolhimento dos centros tecnológicos militares. As dificuldades enfrentadas pelas Forças Armadas para constituírem um aparato industrial de apoio tendem a persistir e, caso sejamos omissos, poderão até se agravar. É urgente reverter esse quadro.

Neste momento, nossas preocupações e esforços no campo da defesa devem se concentrar em nós, brasileiros, e no Brasil — e na forma como devemos agir para reconstruir nossa Base Industrial de Defesa (BID), especialmente diante de uma conjuntura mutável e imprevisível.

É fundamental buscar o aprestamento operacional com os equipamentos que venhamos a desenvolver. O combatente precisa estar adestrado e plenamente capacitado a empregar as armas concebidas por nós. Como já dizia Alexandre, o Grande, a seus soldados: “Não usem as armas dos persas, pois elas foram feitas para eles, não para vocês.” Somente ao empregar armamentos produzidos no país as Forças Armadas poderão cumprir, de fato, seu papel dissuasório.

Convém lembrar que o uso habilidoso de um canivete, movido por destreza e vontade, costuma impor mais respeito do que um revólver empunhado por alguém sem pontaria ou motivação. No entanto, possuir um revólver continua essencial, já que as armas de fogo, há mais de cinco séculos, provaram ser mais letais e eficazes do que as armas brancas.

Mas, afinal, o que devemos fazer e como conduzir essa reconstrução? Os conflitos modernos tendem a se apoiar cada vez mais na tecnologia. Nesse contexto, destaca-se a importância do investimento em pesquisas na área de mísseis e na consolidação da Agência Espacial Brasileira como pilar estratégico.

Também não podemos ignorar o papel das armas de destruição em massa. Embora o país não precise necessariamente tê-las em seu arsenal, é fundamental dominar a tecnologia necessária para produzi-las rapidamente, caso seja preciso. Contudo, como vimos anteriormente, o verdadeiro campo de avanço tecnológico e militar será a eletrônica — elemento central do desenvolvimento bélico moderno.

A eletrônica será indispensável para viabilizar quatro frentes tecnológicas que transformarão a forma de combate:

  • Robótica, substituindo o soldado pelo robô;
  • Cibernética, para travar guerras dentro dos sistemas de informação;
  • Automação, permitindo que funções de combate sejam realizadas de forma autônoma;
  • Sistêmica, baseada no princípio do sensoriamento, processamento e atuação (SPA), sem intervenção humana.

A pesquisa científica será o alicerce para o avanço dessas áreas. É por meio dela que a cibernética poderá ser desenvolvida como núcleo integrador entre sensores, processadores e sistemas de ação, unindo comunicação e controle em uma única rede operacional. Nesse cenário, a cibernética torna-se uma verdadeira arma de guerra — aplicável tanto em conflitos assimétricos quanto em guerras convencionais, ou até mesmo como ferramenta do terrorismo.

Outro aspecto fundamental destacado no estudo sobre a guerra do futuro é o controle do espectro eletromagnético, o que reforça ainda mais a urgência de pesquisas nesse campo.

Diante disso, podemos traçar algumas diretrizes para a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias voltadas às Forças Armadas. Esses esforços devem culminar na criação de uma Base Industrial de Defesa capaz de fornecer ao setor militar dispositivos e sistemas que:

a) Operem de forma eficaz mesmo em ambientes com interferência eletromagnética;

b) Aproveitem os avanços da robótica e da automação;

c) Sejam eficientes e confiáveis;

d) Estruturem um sistema robusto e bem-organizado, apto a conduzir operações de guerra cibernética com êxito.

A construção de uma Base Industrial de Defesa representa apenas uma parte do esforço necessário para fornecer às Forças Armadas os equipamentos essenciais à guerra moderna. Para isso, é indispensável desenvolver um sólido aparato de pesquisa e desenvolvimento (P&D), capaz de oferecer ciência, tecnologia e inovação à BID.

Como sugestão estratégica, propõe-se a criação de dois centros complementares, operando paralelamente à BID, mas voltados exclusivamente à pesquisa: o Centro Militar de Pesquisa Pura (CMPP) e o Centro Militar de Pesquisa Aplicada (CMPA). Ambos seriam subordinados diretamente ao Ministério da Defesa, com a missão de transformar inovações em equipamentos militares prontos para produção, a serem entregues à indústria nacional, pública ou privada, por meio de encomendas das Forças Armadas.

O CMPP se dedicaria à pesquisa de ponta, explorando os limites do conhecimento nas ciências naturais e investigando suas possíveis aplicações no campo dos armamentos. Já o CMPA seria responsável pela engenharia reversa e pela conversão das descobertas em soluções tecnológicas concretas. Esses centros deveriam estar integrados ao sistema universitário nacional e conectados de forma orgânica tanto aos laboratórios das empresas da BID quanto aos centros tecnológicos das próprias Forças Armadas.

A construção de um sistema científico e tecnológico capaz de sustentar uma Base Industrial de Defesa eficiente só será possível se soubermos aproveitar a infraestrutura de pesquisa já existente nas universidades e nos centros militares. Para isso, é essencial promover uma articulação eficaz entre os setores público e privado, criando sinergias que impulsionem o desenvolvimento nacional.

No campo da tecnologia militar, torna-se necessário identificar os materiais estratégicos de interesse — estejam eles atualmente disponíveis ou não nas Forças Armadas. Para os insumos ainda indisponíveis, uma abordagem indireta pode ser adotada, com o objetivo de estabelecer, no Brasil, um novo ciclo produtivo voltado à indústria de defesa. Apesar dos obstáculos enfrentados nos últimos anos, o país ainda conta com uma base industrial sólida e competitiva, oferecendo um cenário promissor para a formulação de uma política industrial de defesa robusta e eficaz.

Essa política deve unificar, em uma única estratégia, os pilares da tecnologia, da segurança nacional e do desenvolvimento socioeconômico. Para isso, é fundamental compreender a conjuntura atual e, ao mesmo tempo, atuar sobre a estrutura do sistema, promovendo mudanças sustentáveis e estratégicas.

No contexto atual, é prioritário fortalecer a BID existente, de modo a suprir as necessidades das Forças Armadas com alta capacidade de mobilização. Mesmo que, neste momento, isso implique a produção de equipamentos com menor valor agregado tecnológico, tal esforço é crucial para garantir a prontidão operacional. Nesse sentido, algumas medidas podem ser adotadas:

a) Restringir ao mínimo necessário a aquisição de materiais de defesa no exterior, priorizando a produção nacional;

b) Manter em operação as indústrias de defesa, assegurando níveis adequados de encomendas para preservar sua capacidade produtiva;

c) Ampliar gradualmente a BID, incorporando, de forma planejada, inovações resultantes de programas de pesquisa e desenvolvimento, ajustadas às necessidades do país e promovendo a integração tecnológica entre as três Forças.

Além disso, é estratégico fomentar projetos conjuntos de pesquisa militar com países desenvolvidos, bem como com nações vizinhas da América Latina e da África. O Brasil pode exercer papel de liderança, especialmente na formação de recursos humanos em engenharia militar, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Esses projetos poderiam prever que estudantes dessas nações realizem suas pesquisas sob a orientação de professores de nossas instituições de ensino.

Nas parcerias com países desenvolvidos, o Brasil tem a oportunidade de adquirir conhecimento tecnológico de ponta. Essa cooperação pode ocorrer de duas formas:

No nível da tecnologia crítica, por meio de programas conjuntos de pesquisa, com equipes mistas de cientistas brasileiros e estrangeiros;

No desenvolvimento de materiais de emprego militar, através de projetos compartilhados, nos quais o país parceiro detenha o domínio do projeto, mas a fabricação dos componentes seja dividida conforme a capacidade industrial de cada nação.

Por fim, nossa capacidade de enfrentar eventuais conflitos com chances reais de sucesso dependerá, cada vez mais, do fortalecimento da BID e da construção de um sistema científico, tecnológico e industrial alinhado aos avanços da humanidade e aos desafios contemporâneos.

BIBLIOGRAFIA

BITZINGER, Richard A, The Business of Defense: Examining the Global Defense Industry, Praeger Security International, 2009;

HARTLEY, Keith, The Economics of Defence Policy: A New Perspective, Routledge, 2011;

HASIK, James, Arms and Innovation: Entrepreneurship and Alliances in the Twenty-First Century Defense Industry, University of Chicago Press, 2008

MATTHEWS, Ron (org.), The Political Economy of Defence: Issues and Perspectives, Cambridge University Press, 2019.

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