Caxemira: as tensões entre Paquistão e Índia e suas implicações globais

Por Defesanet

A região da Caxemira, situada na fronteira entre Paquistão e Índia, permanece como um dos pontos de maior tensão geopolítica do planeta. Desde a partição do subcontinente indiano em 1947, a disputa pelo controle dessa área estratégica desencadeou conflitos armados, crises diplomáticas e uma rivalidade que transcende o âmbito regional, com implicações para a segurança global.

Este editorial analisa os fatores históricos, políticos e estratégicos que alimentam o conflito, bem como os riscos e desafios para a estabilidade na Ásia Meridional.

Raízes históricas do conflito

A Caxemira tornou-se um ponto de discórdia logo após a independência da Índia e do Paquistão do domínio britânico. O então estado principesco de Jammu e Caxemira, de maioria muçulmana, mas governado por um marajá hindu, enfrentou a decisão de aderir a um dos dois novos países.

A escolha do marajá Hari Singh pela Índia, em meio a revoltas internas e incursões de milícias apoiadas pelo Paquistão, desencadeou a primeira guerra indo-paquistanesa (1947-1948).

O conflito resultou na divisão da região, com a Índia controlando cerca de dois terços do território (Jammu, Vale da Caxemira e Ladakh) e o Paquistão administrando a Caxemira Livre (Azad Kashmir) e Gilgit-Baltistão.

Desde então, a Linha de Controle (LoC), estabelecida pelo cessar-fogo de 1949, tornou-se uma fronteira de fato, mas nunca plenamente reconhecida por ambos os lados. Duas outras guerras (1965 e 1999) e inúmeros confrontos armados reforçaram a animosidade, enquanto a questão da autodeterminação da população caxemirense permanece sem solução.

A revogação do Artigo 370 e a escalada das tensões

Em agosto de 2019, a decisão do governo indiano, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, de revogar o Artigo 370 da Constituição, que concedia autonomia especial à Caxemira administrada pela Índia, marcou um ponto de inflexão.

A medida, acompanhada pela imposição de um bloqueio de comunicações e aumento da presença militar, foi justificada por Nova Délhi como um passo para integrar plenamente a região e combater o terrorismo. No entanto, a ação provocou indignação no Paquistão, que a considerou uma violação do direito internacional, e intensificou protestos na Caxemira indiana.

O Paquistão, que historicamente apoia grupos militantes na região como parte de sua estratégia de “guerra por procuração”, respondeu com uma campanha diplomática para internacionalizar a questão.

Contudo, a comunidade internacional, incluindo potências como Estados Unidos e China, tem evitado tomar partido de forma explícita, preferindo exortar o diálogo bilateral.

Pior momento desde 1999

O cessar-fogo foi anunciado após as tensões aumentarem na fronteira dos dois países. Em reação a um ataque realizado pelo Índia na quarta-feira, as Forças Armadas paquistanesas dispararam neste sábado mísseis contra várias posições na Índia.

O governo indiano afirma que a ofensiva da quarta-feira foi em retaliação ao atentado terrorista de 22 de abril em que homens armados, supostamente baseados no Paquistão, invadiram Pahalgam, região turística na Caxemira administrada pela Índia, e abriram fogo contra civis, deixando ao menos 26 mortos, a maioria hindus. Eles teriam selecionado as vítimas com base em sua religião, pedindo para que recitassem versos islâmicos para identificar não-muçulmanos antes de atirar. O Paquistão nega envolvimento no ataque.

Desde então, a situação se deteriorou rapidamente. O Paquistão informou neste sábado que ao menos 13 civis foram mortos e 56 ficaram feridos na Caxemira administrada pelo Paquistão desde a meia-noite devido a confrontos transfronteiriços.

Islamabad havia relatado anteriormente que os ataques aéreos da Índia na última quarta-feira contra bases supostamente terroristas em seu território e as violações do cessar-fogo na fronteira de fato entre as nações vizinhas deixaram 33 civis mortos e 57 feridos no lado paquistanês.

Também foram registradas mortes no lado indiano da Linha de Controle (LoC) devido a intensas trocas de tiros entre forças paquistanesas e indianas, com ao menos 26 vítimas, a maioria delas devido a violações do cessar-fogo dentro do território indiano. O número de mortos na Índia também inclui três mortes relatadas neste sábado, devido a um ataque aéreo paquistanês.

A escalada de tensão entre Índia e Paquistão marcou o pior momento entre as duas potências nucleares desde o Conflito de Cargil, em 1999. A Caxemira, disputada entre Nova Delhi e Islamabad desde sua partição em 1947, tornou-se o foco de disputas entre os dois países.

Interesses estratégicos em jogo

A Caxemira não é apenas uma questão de orgulho nacional para Índia e Paquistão; é também um ponto estratégico crucial. A região abriga recursos hídricos vitais, como os rios Indo, Jhelum e Chenab, essenciais para a agricultura e o abastecimento de ambos os países.

Além disso, sua localização geográfica, próxima às fronteiras com China e Afeganistão, confere à Caxemira um valor militar e geopolítico inestimável.

A China, aliada próxima do Paquistão, também desempenha um papel relevante. O Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC), parte da Iniciativa Cinturão e Rota, atravessa territórios disputados na Caxemira paquistanesa, o que irrita a Índia.

Por outro lado, a Índia mantém tensões com a China em Ladakh, onde confrontos fronteiriços em 2020 expuseram a fragilidade da estabilidade regional.

Implicações globais

O conflito na Caxemira tem potencial para desestabilizar não apenas a Ásia Meridional, mas também o equilíbrio global. Índia e Paquistão são potências nucleares, e qualquer escalada militar poderia levar a consequências catastróficas. A comunidade internacional, embora relutante em intervir diretamente, reconhece o risco de um confronto nuclear, ainda que acidental.

Além disso, o conflito alimenta a radicalização e o terrorismo. Grupos extremistas, como o Lashkar-e-Taiba e o Jaish-e-Mohammed, exploram o descontentamento na Caxemira para recrutar militantes, enquanto a repressão indiana na região gera acusações de violações de direitos humanos, complicando a narrativa de ambos os lados.

Dois dos maiores exércitos do mundo

Com quase 1,5 milhão de soldados ativos, as forças armadas da Índia são a segunda maior da Ásia, atrás apenas da China. Além disso, o país possui ainda 1,1 milhão de reservistas que poderiam ser recrutados em caso de emergência, e cerca de 2,5 milhões de pessoas que poderiam serem organizadas em unidades paramilitares. No total, isso significa que até 5 milhões de pessoas poderiam ser mobilizadas para uma guerra.

Já o Paquistão, possuiu 650 mil soldados – o quinto maior exército do continente. O país tem ainda cerca 550 mil reservistas e um número semelhante de paramilitares, totalizando cerca de 1,7 milhão de combatentes armados.

Nenhum dos dois países fornece números exatos sobre quantos militares e paramilitares estão alocados na Caxemira. Estima-se que a Índia mantenha mais de 750 mil soldados em Jamu e Caxemira, concentrados principalmente no Vale da Caxemira, de maioria muçulmana. O Paquistão, por sua vez, conta com 150 mil militares na região, além de vários grupos militares – considerados organizações terroristas pela Índia.

Ambos os lados acusam o outro de exagerar nas provisões militares, e nenhum deles publica números precisos. Entretanto, analistas avaliam que a densidade militar da região, especialmente em relação à população civil, é semelhante à da península coreana.

Ao contrário da Índia, as forças armadas sempre tiveram um papel de destaque na política e sociedade do Paquistão. Desde a fundação do Estado em 1947, houve vários golpes militares. Até hoje, a liderança militar exerce influência indireta na política externa e de segurança, bem como em mudanças do governo. As forças armadas também estão envolvidas na economia, com participações em várias empresas.

Peso pesado militar

A Índia é um peso pesado absoluto quando se trata de gastos militares. De acordo com o último relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês), Nova Delhi gastou cerca de 86 bilhões de dólares em defesa no ano passado – o maior volume da história do país.

Nos últimos anos, o orçamento militar da Índia tem crescido continuamente e, hoje, é cerca de oito vezes maior do que o do Paquistão, com 10,2 bilhões de dólares de gastos militares.

Em 2024, a Índia foi o segundo país do mundo que mais importou armas, atrás apenas da Ucrânia. A maior parte desse equipamento vem da Rússia. Além disso, empresas de defesa indianas e russas trabalham juntas há anos em pesquisa, desenvolvimento e produção de sistemas de armas. Entre os fornecedores de armas para o país estão ainda França, Estados Unidos e Israel.

Dependente da China

De acordo com o Sipri, o Paquistão é o quinto maior importador de armas do mundo. Nos últimos anos, Islamabad tem investido em suas forças aérea e marinha. O principal fornecedor é a China – 81% do equipamento militar paquistanês foi comprado de lá.

As relações entre China e Índia são tensas, principalmente devido a conflitos fronteiriços, também na Caxemira. Mas Pequim mantém relações econômicas estreitas com o Paquistão. Produtos chineses têm acesso ao Oceano Índico através do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC). O porto de Gwadar, usado pela marinha chinesa, fica no fim dessa rota.

Arsenais nucleares equilibrados

Em termos de números e tecnologia, as forças armadas da Índia são claramente superiores as do Paquistão. Mas o que torna o conflito na Caxemira e qualquer escalada perigosos é o fato de Índia e Paquistão possuírem arsenais nucleares. Segundo estimativas do Sipri, cada um dos países possui cerca de 170 ogivas nucleares.

Ambos os países estão comprometidos em manter um arsenal que seja suficiente para garantir um meio de intimidação confiável. Embora a Índia tenha em 1999 se comprometido unilateralmente de se abster de um primeiro ataque nuclear, o Paquistão não fez nenhuma declaração semelhante tendo em vista sua inferioridade militar em relação ao país vizinho. Caso Islamabad seja forçada a ficar na defensiva durante uma guerra, é mantido em aberto a opção de ser o primeiro a usar o arsenal atômico.

A história moderna do conflito remonta a 1947, quando a Índia Britânica foi dividida em Índia, de maioria hindu, e Paquistão, de maioria muçulmana. O que hoje constitui o território indiano de Jamu e Caxemira – parte da região mais ampla da Caxemira – era, na época, governado pelo marajá hindu Hari Singh, que inicialmente se recusou a se juntar a qualquer um dos países.

Desde então, Índia e Paquistão travam guerras entre em si, a última em 1971. Como jovens potências nucleares, os dois países se enfrentaram no Conflito de Cargil, em 1999, mas conseguiram evitar uma escalada maior após alguns meses. Ambas as nações vêm então expandindo seus arsenais nucleares.

Caminhos para a Paz?

Resolver o conflito na Caxemira exige abordar tanto as aspirações da população local quanto as rivalidades entre Índia e Paquistão. Um passo inicial seria a retomada do diálogo bilateral, suspenso desde os ataques terroristas de 2019 em Pulwama. A restauração de canais de comunicação, a desmilitarização gradual da LoC e a inclusão de representantes caxemires nas negociações poderiam criar um ambiente mais propício à confiança mútua.

A comunidade internacional, por sua vez, poderia desempenhar um papel de mediação neutra, embora isso enfrente resistência de Nova Délhi, que considera a questão um assunto interno. Organizações como a ONU poderiam pressionar por maior transparência e respeito aos direitos humanos na região, enquanto potências como os EUA e a Rússia poderiam usar sua influência para incentivar a moderação.

A disputa pela Caxemira é mais do que um conflito territorial; é um reflexo das complexidades históricas, culturais e estratégicas que moldam as relações entre Índia e Paquistão.

Enquanto a rivalidade persistir, a região permanecerá um barril de pólvora geopolítico, com ramificações que vão além da Ásia Meridional. A busca por uma solução duradoura exige pragmatismo, diálogo e, acima de tudo, o reconhecimento de que a paz na Caxemira é um imperativo não apenas para as partes envolvidas, mas para a estabilidade global.

Defesanet – Análise e Perspectivas em Defesa e Geopolítica com DW cn (AP, EFE, Reuters)

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