Em Macapá, roda de escuta acolhe dores e fortalece vidas há 15 anos

Por SELES NAFES

Toda segunda-feira, quando o relógio marca 19h, uma sala do Santuário de Nossa Senhora de Fátima, no centro de Macapá, se transforma em um espaço de escuta, acolhimento e partilha. Ali acontece, desde 2009, a Roda de Terapia Comunitária Integrativa conduzida voluntariamente pela psicóloga Regina Frota. Ao longo de 15 anos, cerca de 16 mil pessoas já passaram pelo grupo — muitas delas em momentos de desespero e fragilidade emocional, outras em busca de fortalecimento e sentido diante dos desafios da vida. Na próxima segunda (19), a roda completa 500 reuniões.

Inspirada na metodologia desenvolvida pelo psiquiatra cearense Adalberto Barreto, a terapeuta encontrou na partilha de vivências um caminho potente de cuidado coletivo, especialmente em um momento em que a rede pública de saúde mental no Amapá ainda era precária. A roda se consolidou como um espaço seguro onde histórias de dor e superação se cruzam e ajudam a construir novas formas de enxergar e enfrentar a realidade. Nesta entrevista em formato pingue-pongue, Regina fala sobre as origens do projeto, os princípios da terapia comunitária e o impacto transformador da escuta coletiva.

Mãe de três filhos, Regina Frota, de 56 anos, é psicóloga clínica e hospitalar há 31 anos. Nasceu em Belém, onde se formou na UEPA. Ela usa a abordagem sistêmica com adultos, casais, famílias e grupos. 

Terapia Comunitária Integrativa existe há 15 anos no AP…

…implantada por Regina Frota

Há quanto tempo a roda de escuta existe e qual é o seu objetivo?

A roda aqui em Macapá existe desde agosto de 2009, de forma voluntária. Comecei a me angustiar muito por volta de 2004 a 2006, quando as Unidades Básicas de Saúde não contavam com psicólogos. Havia uma procura real por suporte psicológico. Eu atendia na UBS Álvaro Corrêa (São Lázaro, zona norte de Macapá), onde chegavam pessoas de Santana e até de Laranjal do Jari (sul do Amapá). Conheci, no terceiro Congresso Internacional de Etnopsiquiatria, o psiquiatra Adalberto de Paula Barreto, pai da terapia comunitária. Ele entendeu que, a partir de um conjunto de regras, as pessoas podem se colocar de forma genuína em um ambiente emocionalmente seguro e respeitoso, trocando experiências que ampliam a consciência. A partilha da dor permite acolhimento e novas possibilidades de intervenção sobre questões dolorosas.

Mesmo com dores diferentes, como separação, luto ou dependência química, esse espaço realmente ajuda?

Sim, é aí que reside a riqueza da técnica. É na diversidade que a gente se reconhece. Quando um caso é escolhido, outras pessoas que viveram experiências parecidas, em algum aspecto, se conectam. 

Dores por problemas diferentes…

…geram conexões

Como funciona a escolha dos temas nas reuniões?

A cada reunião, é escolhido um tema. Por exemplo, se há 10 pessoas e duas querem expor suas dores — uma enfrenta o “ninho vazio”, a outra lida com a dependência química de um familiar —, o grupo escolhe o tema mais recorrente, como a dependência química, por exemplo. Esse tema será trabalhado com músicas, contos, reflexões, mensagens e perguntas. A pessoa organiza seus pensamentos ao responder e percebe algo novo para lidar com a sua situação. A gente usa versículos da Bíblia, pensamentos de grandes filósofos, contos, reflexões, ditados populares e músicas que potencializam a força que aquele tema traz.

Existe vergonha ou constrangimento em expor sentimentos na roda?

Não. A roda não trata de segredos, mas sim do que é comum a todos: sofrimento, o que tira a nossa paz, o que impede um sono tranquilo. Acreditamos que “quando a boca cala, o corpo fala, e quando a boca fala, o corpo sara”.

As pessoas precisam frequentar a roda indefinidamente?

Elas participam pelo tempo que quiserem. A minha experiência mostra que, com cerca de 10 encontros, já se trabalha muitas questões, pois há um passo a passo e vários aspectos da vida são abordados.

Roda com pacietes de fibromialgia

As pessoas acabam expondo suas intimidades nas rodas? Isso surge espontaneamente?

Sim, muitas vezes surge espontaneamente. Já tivemos relatos impactantes no final das rodas, como pessoas que disseram estar prestes a cometer suicídio, mas desistiram após participarem. Ela disse: “eu tinha uma corda preparada quando eu fosse pra minha casa, mas não vou mais fazer isso”. 

Quantas pessoas já passaram pela roda nesses anos?

Mais de 16 mil pessoas já participaram, tanto presencialmente quanto online, especialmente durante a pandemia, quando usamos plataformas que permitiam a entrada simultânea de várias pessoas.

A participação na roda exclui a necessidade de fazer terapia individual?

Se ela quiser, por determinação ou dificuldade dela, ela pode participar dos dois.

Há planos para expandir a roda para outros municípios ou fazer formações?

Ainda não temos estrutura, mas queremos começar a construir isso. A terapia comunitária começou na Europa com o doutorado do Adalberto Barreto e hoje já está presente no Brasil, na América Latina e, recentemente, nos Estados Unidos.

Sala no santuário de Nossa Senhora de Fátima. Basta chegar, sem agendamento. Fotos: Reprodução/Instagram

Existem outras rodas parecidas aqui no estado?

Aqui no Amapá, até onde sei, apenas eu realizo rodas de terapia comunitária. Há alguém começando em Santana, mas não sei quem é.

É preciso pagar para participar da roda?

Absolutamente nada. A roda não é um grupo de psicoterapia, é um grupo aberto, realizado no Santuário de Fátima, com espaço cedido pela Pastoral da Saúde. Tudo é feito de forma voluntária, desde o início.

O que está sendo planejado para comemorar o aniversário da roda?

A comunidade está organizando uma surpresa pra mim, por isso ainda não sei dizer. Quando tocamos a dor da alma de alguém, essa alma fica eternamente grata. Isso mobiliza muitas pessoas de forma muito positiva.

Já houve casos marcantes que criaram laços de amizade ou até relacionamentos?

Sim, da roda já surgiram casais de namorados, grandes amizades. Não importa a religião ou nacionalidade — já tivemos participantes da Argentina, França, Itália. Inclusive, um francês participou com ajuda da esposa que fazia a tradução. Ele foi acolhido e se envolveu afetivamente no grupo.

Atualmente, quantas pessoas participam das rodas?

Varia bastante. Já tivemos encontros com 80 pessoas, outros com 30 ou até apenas 6. É um grupo aberto: quem quiser, pode chegar e participar.

Precisa fazer agendamento para participar?

Não, não é necessário agendamento. É só chegar e participar. A roda acontece toda segunda-feira, às 19h30, com duração de uma hora e meia.

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