A nova guerra industrial: superprodução chinesa, blefe tarifário americano e o dever do Brasil de dizer não ao dumping

A economia global entrou em uma nova fase de conflito. Não se trata mais apenas de comércio ou diplomacia, mas de uma guerra por controle da produção, dos mercados e da tecnologia. De um lado, os Estados Unidos impõem tarifas. Do outro, a China opera com superprodução e preços artificiais. O campo de batalha é o mercado global. E os países que não reagirem, vão sucumbir.

No centro desse conflito, dois modelos antagônicos. O primeiro, americano, busca trazer as fábricas de volta com medidas protecionistas. O segundo, chinês, impõe ao mundo o custo das próprias contradições internas por meio de uma enxurrada de produtos subsidiados e manipulação estatística. Entre esses dois gigantes, o Brasil precisa decidir: será vítima ou estrategista?

A verdade silenciada: Gao Shanwen e o colapso encoberto

Gao Shanwen não era um dissidente. Economista-chefe da estatal SDIC Securities, ligado ao núcleo duro do regime, sempre operou dentro do sistema. Até que, em 2023, resolveu falar. Em conferências na China e nos Estados Unidos, revelou aquilo que o Partido Comunista se esforçava para esconder: a economia chinesa estava em crise estrutural, e os dados eram falseados.

Segundo Gao, o PIB real da China cresceu apenas 2% nos últimos anos, contra os 5% divulgados oficialmente. E o desemprego juvenil, que o governo afirmava ser de 17%, na verdade superava os 40%. Mais do que números, ele expôs o sentimento de estagnação e desalento de uma geração: “Os jovens na China estão sem vida, e os adultos de meia-idade não têm nada pelo que viver”.

A resposta do regime foi rápida. Gao perdeu a licença profissional, foi silenciado e sumiu da vida pública. Seu crime? Revelar que a segunda maior economia do planeta vinha se sustentando sobre estatísticas manipuladas e um modelo econômico insustentável.

Superprodução, dívida e agressão industrial

A China de Xi Jinping baseia seu poder em produção excessiva, repressão ao consumo interno e manipulação do espaço estatístico e fiscal. O consumo representa apenas 39% do PIB, contra 68% nos EUA. Isso não é um acidente: é política. O sistema hukou, que impede 700 a 800 milhões de pessoas de migrar legalmente do campo para as cidades, restringe o poder de compra e reduz o mercado interno.

Com o consumo travado, o país despeja sua capacidade produtiva no exterior:

  • 33,7% dos carros do mundo foram fabricados na China em 2024.
  • No aço, a China detém 54,6% da produção global, com excedente de 50 milhões de toneladas — mais que toda a produção combinada de Itália e Alemanha.
  • Em químicos, cresceu 40,9% em cinco anos e domina 43% do mercado global.
  • Suas fundições triplicaram desde 2000, enquanto países como a Itália regrediram aos níveis de 1980.

Esse modelo é financiado por uma dívida total que já ultrapassou, proporcionalmente ao PIB, a dos EUA, segundo o BIS. A bolha imobiliária, que destruiu US$ 18 trilhões em valor, o triplo do subprime americano, só acelerou o processo: o governo não estimulou o consumo, e sim redobrou o estímulo à produção e às exportações.

Os EUA reagem. A Europa hesita. E o Brasil?

Diante da ofensiva chinesa, os Estados Unidos optaram por tarifas. Donald Trump e, em parte, Joe Biden, passaram a subsidiar reindustrialização com estímulos diretos e incentivos ao reshoring, o retorno das fábricas ao solo americano.

A Europa, por sua vez, vive o dilema entre preservar sua indústria e manter uma retórica liberal e ambientalista. As consequências estão aí: fábricas fechando, perda de mercado e desindustrialização progressiva.

O Brasil, entretanto, ainda evita confrontar a realidade chinesa. Muito cauteloso em argumentar com   seu maior parceiro comercial, o país segue tolerando práticas de dumping que destroem a indústria nacional, corroem empregos e inviabilizam qualquer tentativa séria de reindustrialização.

Mas é hora de romper o silêncio. Ser parceiro não significa aceitar tudo. O Brasil precisa ter coragem de discordar da estratégia predatória da China.

A oportunidade brasileira: o nearshoring

Há, no entanto, uma janela estratégica que o Brasil pode — e deve — aproveitar: o movimento global de nearshoring. Com os choques nas cadeias produtivas durante a pandemia e o crescente custo político de depender da China, empresas multinacionais estão buscando diversificar suas fábricas para países mais próximos de seus mercados finais.

México, Vietnã, Índia e Europa Oriental já surfam essa onda. O Brasil, com sua dimensão continental, base industrial ainda existente, matriz energética limpa e acesso privilegiado ao mercado sul-americano, pode ser um dos grandes hubs de produção alternativa à Ásia.

Para isso, precisa agir rápido:

  • Reformar seu sistema tributário para reduzir insegurança jurídica;
  • Modernizar a infraestrutura logística e portuária;
  • Ampliar acordos comerciais estratégicos;
  • E apresentar um plano claro de estabilidade institucional, crédito e inovação.

O que o Brasil deve fazer já

-Definir setores prioritários para reindustrialização: Agroindústria tecnológica, saúde, energia renovável, defesa e semicondutores. O país não precisa competir em tudo, mas precisa ser líder em algo.

-Fortalecer a defesa comercial: a China atua fora das regras da OMC. O Brasil deve denunciar práticas desleais e coordenar ações com México, Índia, UE e Vietnã.

-Investir em consumo interno como motor da indústria: diferente da China, o Brasil deve valorizar seu mercado interno. Crédito direcionado, inovação e estímulo à demanda são ferramentas-chave.

-Reposicionar a política externa: renegociar o acordo com a UE com foco em tecnologia e proteção setorial. Buscar acordos bilaterais com países do G20 industrial.

-Estabelecer hubs regionais de produção (nearshoring): zonas francas, parcerias público-privadas e marcos regulatórios estáveis podem transformar o Brasil no México da América do Sul.

O dever de agir

A guerra industrial já começou e o Brasil ainda está nas arquibancadas. Os EUA atacam com tarifas, a China com produção subsidiada e números manipulados. O silêncio do Brasil não seria neutralidade: seria vulnerabilidade.

O país precisa ter coragem de afirmar seus interesses, proteger seus trabalhadores e construir sua autonomia produtiva. A hora de agir é agora — antes que virar apenas mais um mercado comprador sem fábricas, sem empregos e sem futuro.

*Coluna escrita por Fabio Ongaro, economista e empresário no Brasil, CEO da Energy Group e vice-presidente de finanças da Camara Italiana do Comércio de São Paulo – Italcam

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