Ideologia na política externa

Chegou a hora de o governo e o Congresso discutirem, com o setor privado, políticas inovadoras para definir o lugar do Brasil no mundo

Rubens Barbosa
Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice),
foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)
10 Junho 2025
O Estado de S. Paulo

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, inaugurou, em abril passado, o projeto Pátria Grande do Sul, no Estado de Bolívar, no sul do país, na fronteira com Roraima. Foram entregues 180 mil hectares de terra ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fará um trabalho em conjunto com o governo venezuelano para ampliar a produção de alimentos seguindo o viés da agroecologia. De acordo com Maduro, serão produzidos 30 mil hectares de feijão, além de frutas, mamão, cana-de-açúcar, inhame, frango, carne de porco, carne bovina e seus derivados, vegetais, milho e galinhas. O MST também prepara a produção de um banco de sementes nativas tradicionais e um viveiro de mudas para reflorestamento.

A coordenadora da brigada do MST na Venezuela, Rosana Fernandes, afirmou que o projeto é um modelo de produção agroecológico, com formação política e técnica. De acordo com ela, o projeto demonstra o compromisso do movimento com a revolução bolivariana. O MST atua no país há quase 20 anos em parceria com as comunas venezuelanas, ajudando em projetos de agroecologia, além de formação técnica e produção de alimentos orgânicos.

Além da cooperação do MST com o governo venezuelano, no dia 12 de abril passado, o Diário Oficial da União publicou memorandum de entendimento estabelecendo as bases de cooperação técnica entre o Itamaraty e três ministérios venezuelanos da área de agricultura e alimentação e com comunidades e movimentos sociais. As atividades de cooperação deverão ser implementadas pelos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura, pela Conab e pela Embrapa.

Não houve qualquer manifestação oficial do governo brasileiro sobre o assunto. Enquanto isso, como parte da Jornada de Luta das Mulheres Sem Terra, o MST promoveu mais de 70 ações de protesto e invasões entre os dias 11 e 14 de março, em todas as regiões do Brasil.

Depois das sucessivas controvérsias criadas pelo apoio de Lula a Maduro na contestada eleição presidencial e de ataques públicos de Maduro a Lula, o governo brasileiro conduz o relacionamento bilateral de maneira discreta. A negociação desses acordos e da participação do MST no projeto Pátria Grande do Sul foi feita com a intermediação do governo brasileiro, por meio do Itamaraty.

Enquanto esses acordos estavam sendo negociados e assinados, o Brasil, que representa os interesses da Argentina na Venezuela, não conseguiu convencer Maduro a autorizar que cinco venezuelanos exilados deixassem a Embaixada da Argentina, submetidos a toda sorte de restrições. Em vez disso, tomou conhecimento do resgate dos venezuelanos pelo governo americano feito à revelia do Brasil, responsável pela guarda da Embaixada da Argentina. Esses acordos na área agrícola teriam sido uma oportunidade para, em troca, obter a concordância de Maduro para a saída dos exilados.

Diante da maneira como a política externa em relação à Venezuela está sendo tratada – avanço com toda a discrição para evitar a repercussão negativa interna –, poderemos ter novas surpresas nas próximas semanas e meses.

Maduro fez pronunciamento voltado à política interna em que faz novas ameaças relacionadas à ocupação do território do Essequibo na Guiana. Aliás, nas recentes eleições para o Congresso venezuelano foram eleitos representantes para Essequibo, antecipando eventual ocupação daquele território.

Do ponto de vista da credibilidade do Itamaraty, o resgate dos venezuelanos e a ausência de reação do governo de Maduro às repetidas manifestações do governo brasileiro com o objetivo de obter o salvo-conduto para os venezuelanos foram um claro sinal de perda de influência, ampliada pela burocrática explicação em nota oficial da chancelaria.

Com o agravamento do cenário internacional em relação às sucessivas crises e os EUA continuando a impor sua agenda econômica e política, não deixa de causar preocupação a maneira como o governo brasileiro está atuando. São exemplos recentes a visita do presidente Lula a Moscou para participar, ao lado de cerca de 20 presidentes e primeiros-ministros de países reconhecidamente autocráticos, das celebrações do Dia da Vitória da Rússia na Grande Guerra Patriótica; a participação do encontro da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe em Pequim, seguida de uma bem-sucedida visita de Estado à China; e declarações, na visita à França, sobre a guerra na Ucrânia. Lula instruiu o Itamaraty a reagir fortemente, como uma ameaça à soberania brasileira, caso o governo Trump imponha sanções contra ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) com base em alegação de que o Judiciário brasileiro restringiu a liberdade de expressão de cidadão norte-americano – no caso, ninguém menos do que Elon Musk.

Em tempos bicudos, em que o secretário de Defesa dos EUA trata a América Latina como o quintal dos EUA e Trump diz que talvez os países da região tenham de optar entre os EUA e a China, seria contra o interesse nacional se o governo brasileiro se alinhasse a qualquer dos lados e abandonasse a posição de independência e equidistância por motivação ideológica ou partidária.

Chegou a hora de o governo brasileiro e o Congresso Nacional discutirem, com o setor privado, políticas inovadoras para definir o lugar do Brasil no mundo. 

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